DISCOS
Chessie
Dual Mode EP
· 01 Mai 2006 · 08:00 ·
Chessie
Dual Mode EP
2005
Lok Musik / Flur


Sítios oficiais:
- Lok Musik
- Flur
Chessie
Dual Mode EP
2005
Lok Musik / Flur


Sítios oficiais:
- Lok Musik
- Flur
Não convence de imediato a ideia de que pode um comboio funcionar como lamparina dos três desejos, que, sem sequer necessitarem de uma mão que os implore, assumem a forma de três projectos que apraz ver regressados e reunidos numa rodela. Mas, com quase sempre acontece no caso dos Chessie, o afeiçoamento à estranheza terá de ser tão gradual como qualquer outro processo que procure adaptar-se a temperaturas ou luminosidades de choque. Passo a abreviar em algumas frases o percurso e impacto dos Chessie: na tentativa de tentar explorar uma sonoridade que lhe oferecesse uma palete alternativa à que explorava nos Lorelei, ocupantes periféricos da Washington D.isC.hord, eis que Stephen Gardner assumiu o disfarce de Chessie e, com isso, um obsessão por transportes ferroviários que se reflecte no carrilamento instintivo de géneros que conjuga no projecto. Após a entrada de Ben Bailes em 2000 e do lançamento de Overnight - que merecidamente viu ser-lhe prestado um culto que premiava a sua categórica aptidão para ambiências -, o colosso remeteu-se a uma hibernação de quatros anos no que à feitura de álbuns diz respeito. Contudo, quis a Lok Musik armazenar as pontuais actividades verificadas entre 2001 e 2004 (em termos de originais e remisturas a cargo de externos). Abençoadas sejam as almas arquivistas: Dual Mode não deve em nada ao que de mais marcante se escutou dentro dos géneros – pós-rock potencializado por aplicação de electrónica e electrónica agigantada à imagem do pós-rock - durante o ano passado.

Para se ter ideia da importância dos Chessie na actualidade, basta atender a que pode estar bem presente a sua influência no insuflar estilizado que os primeiros Broken Social Scene ou Black Mountain emparelham com as guitarras e instrumentos familiares nos discos que exportam a partir do Canadá natal. Oiça-se, por exemplo, Underwater Cinematographer dos Most Serene Republic para perceber que a ligação não é meramente especulativa – ambos inserem incisivamente o agente digital de acordo com a etiqueta exigida pela ocasião. Pois se cabia à distorção de uma deformidade glitch ampliar o som de um coração inquieto em “Proposition 61” dos Republic, ocupam-se aqui uma mão cheia de texturas amplas e crepitantes de anunciar um crepúsculo trémulo com “Velvet” e, através disso, reafirmar os Chessie como caprichosos manipuladores que antecipam a chegada da noite conforme a sua vontade. E “Velvet” é - isolado ou integrado num conjunto – lindo como um Éden onde coube a um luxurioso tratamento da guitarra morder a maçã. “The Century” – a segundas das duas faixas originais incluídas – destoa da serenidade sonâmbula de Overnight e resulta como se aos Low se pedisse que anunciassem a paz global a partir de um concerto único no ponto mais alto de Nova Iorque. É um daqueles tremores dedilhados em guitarra que mudam a percepção que se tem de uma banda. Cheque-mate duplo.

A cargo das remisturas, temos duas figuras de calibre que não se dariam ao trabalho não fosse o material original apetecível. Jimmy Tamborello – numa preciosa oportunidade de escutá-lo ao comando do projecto DNTEL - recupera “Eyes and Smiles” ao já referido Overnight (a que Dual Mode parece servir de extensão) e trata de lhe conferir uma pinta “maior que a vida” com ornamentação sinfónica e avalanche “dreamy” que os Pluramon não deixariam ao abandono. Depois, temem pelo pior os parafusos do comboio assim que se atreve o seu sistema sonoro a anunciar: "Próxima paragem: remistura de "Daylight" a cargo da debulhadora Sutekh (Seth Horvitz, quando em família)." A mesma que já havia sido incluída na primeira de duas compilações de remisturas, lançadas pela Leaf em 2005, passa aqui a auferir de contexto que lhe realça a grandiosidade. "Daylight" deixou de ser o piquenique celestial que contava com uns ferrinhos por si só capazes de rasgar sorrisos e com uma tradicionalidade sem fronteiras a que não destoaria a anexação da voz de António Variações. Passou a ser uma cerrada derrocada sónica muito próxima de "Wings Over Kansas" (que já concluía Fell em tom de intempérie). Ambos são momentos maiores em termos de revelação e esplendor.

A verdade é que, antes de sequer haver cumprido metade da sua duração, Dual Mode já tem como preenchidos os requisitos atmosféricos que se exigem de um EP. Como se, por reacção à passagem do ano novo pelos vários fusos horários do globo, se sucedesse um habitante de Miami já estar a arrotar ao champagne que o congénere de Sidney ainda não abriu. O eclipse verificado em Dual Mode cega ao ponto de distorcer a noção do tempo. Avança imparável uma locomotiva em forma de bala apontada aos sentidos. O que vier a verter ao orifício daí resultante pode bem servir de recheio a expectativas já existentes. Aguarda-se com ansiedade pela passagem dos comboios que se vislumbram ao reflexo desta discreta pérola.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com

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