DISCOS
Tujiko Noriko / Aoki Takamasa
28 / Blurred in the Mirror
· 08 Abr 2006 · 08:00 ·
Tujiko Noriko / Aoki Takamasa
28 / Blurred in the Mirror
2005
Fat Cat / Room 40 / Flur


Sítios oficiais:
- Fat Cat
- Room 40
- Flur
Tujiko Noriko / Aoki Takamasa
28 / Blurred in the Mirror
2005
Fat Cat / Room 40 / Flur


Sítios oficiais:
- Fat Cat
- Room 40
- Flur
Apesar do parcial falhanço que o terá levado a ocupar o lugar da bolota entre os diamantes que coroam o percurso estético de Björk, o teledisco que Stephane Sednaoui filmou para ilustrar “Possibly Maybe” define compreensivamente o sentimento que faziam transparecer as divas da electrónica em 1995 – ano que conheceu o lançamento do álbum que lhe servia de suporte, Post. Após a euforia generalizada no acolhimento a Debut, coube ao domínio de “Protection”, single dos Massive Attack que conta com a voz serena de Tracey Thorn, anunciar a inflexão a que brevemente se iria remeter o trip-hop. Pouco tempo depois, “Possibly Maybe” encontrava a princesa de Reykjavik entregue a uma melancolia negativista - inédita na sua carreira – que Sednauoi tratou de documentar num teledisco revelador, mas ainda assim incapaz de estar à altura do momento lírico da musa que lhe dá voz (há um qualquer pseudo-psicadelismo naquele pozinho disperso pelo chão). Pode até esse fracasso ter sido provocado pela instabilidade da relação afectuosa entre a autora de Vespertine e o fotógrafo Stephane Sednaoui. “Possibly Maybe” marcava um momento de viragem irreversível. Importa, além disso, frisar também que o próprio sentido camaleónico de Madonna pressentiu a retracção ao momento e levou-a a reinventar-se numa discrição glamourosa, que a resgatou às paredes suadas de caves sado-maso para um divã de storytelling. A própria Björk legitimou esse volte-face com a escrita da faixa que dá título a Bedtime Stories. Contudo, não deve Tujiko Noriko pagar pela espiral de saturação em que mergulhou o trip hop.

Até porque muito mais do que a fixação a esse género, descobre-se aos dois discos aqui invocados uma libertadora convicção na depuração de elementos cujo potencial progride com a tecnologia e que, assim que refrescados, se tornam aptos a oferecer um amadurecimento cativante à pop mais abstracta que vai chegando do Japão. Redundantemente, o surgimento de Tujiko Noriko em cena será sempre tomado como renascentista face ao que já havia sido pavimentado na primeira metade de 90. Talvez por isso, a sua ascensão é habitualmente julgada à sombra de um “timing” que obriga a equacionar o período mencionado e a sagrada tetralogia que, entre Debut e Vespertine, canonizou o nome de Björk. O mais forte elo entre as duas divas residirá porventura na imprevisibilidade caracteristicamente feminina de Nojiko – densamente velada pelo facto das letras serem entoadas em japonês e remetente para o “lottery or car crash, or you’ll join a cult” que reflectia sobre o receptor masculino a ansiedade de fada do lar que se escuta e visualiza a “Possibly Maybe”.

No espaço de um ano, a cançonetista revelada pela Mego e injustamente inconsiderada no Japão natal, vê o seu nome associado a dois discos que encontram a micro-sensualidade da sua voz (paradoxal à muito mais presente sexualidade das fotos promocionais) entregue ao cuidado de dois produtores: Aoki Takamasa e Lawrence English. A relação criativa com o primeiro prolongava-se desde há três anos (após se terem conhecido na Paris onde Tujiko residia então) e desaguou finalmente em 28, lançado pela britânica Fat Cat no final do ano passado. Que podemos então esperar a uma colaboração fermentada durante tão longo período de espera? Nada mais que o aperfeiçoamento proporcionado pelo tempo que tomou aos dois nativos de Osaka a desenvolver um telepatia que faz com que cada faixa seja um produto final e definitivo de excelência laboratorial (isto apesar de Takamasa ter demorado dois anos a encontrar a mistura perfeita para “Vinyl Words”, para a qual alega dispor de 200 versões diferentes). Escuta-se um andamento ping-pong ao inquieto minimalismo que vai sendo retirado a glitch fossilizado por quem gere a maré de ruídos em conformidade com uma disposição mais ou menos anfíbia por parte de Tujiko. Sendo que acaba sempre por ser o alcance pacificador da sua voz a escovar a superfície rude do glitch de Aoki Takamasa. 28 é casamento químico celebrado pela objectiva de Jonathan Glazer – atendendo a que não é de todo difícil transpor Tujiko e Aoki para a anti-gravidade do teledisco dos Radiohead e ladeá-los verticalmente com uma neve tão cândida quanto a do tema que encerrava os episódios do Urso Misha.

O que para Aoki Takamasa é uma bênção exclusiva, passa ser múltipla, assim que damos conta do conceito que orientou as sessões que deram forma a Blurred in the Mirror. Sob a orientação inicial de Lawrence English, patrão da label responsável pelo lançamento de Mirror e instigador dos germinantes primeiros esboços vocais cedidos, foram sendo convidados a participar e a revestir a dorsal presença de Tujiko uma série de produtores familiares à Room 40. Daí terá brotado um exotismo resultante do cruzamento entre nacionalidades intervenientes e uma sofisticação cinzelada por uma dezena de mãos apostadas em contrariar o cliché frequentemente associado à pop mais dada a abstracções (após trocar as voltas ao hip hop sob o desígnio de Object, Lawrence English prova que não há desafio de produção insuperável – “Tennisplayer Makes a Smile” soa a extraordinária síntese pop do universo radiante de Happiness Will Befall, que a Crónica lançou o ano passado). Alturas há em que Blurred in the Mirror se aproxima assumidamente do chill out e outras em que revisita a gravidade ribombante de alguns loops conhecidos aos primórdios de Shojo Toshi. Todas essas características que jazem encapsuladas num disco que será das propostas mais acessíveis que a Room 40 durante os seus cinco anos de existência e, ao mesmo tempo, um dos mais complexos capítulos na discografia da artista que um dia entregou despretensiosamente as suas gravações à apreciação de Pita (Peter Rehberg) e acabou no lugar de ícone da Mego.

Sorrateiramente, acaba por escapar um riso – abafado entre dentes na conclusão do disco - a admitir por Tujiko o deliberado pecado que a terá conduzido a partilhar dos lençóis textiformes produzidos pelo conjunto de nomes propostos pela Room 40. Os mesmos que, a partir daqui, passam a integrar o histórico de estilistas que compõem as alíneas genéticas da Tujiko Noriko que um próximo disco venha a encontrar. A experiência revelou-se gratificante e não surpreenderia que o futuro viesse a dar continuidade aos affairs estabelecidos com John Chantler, David Kemp ou Aki Onda, ou à relação sólida que a uniu a Lawrence English. Passa um condomínio restrito a ser distorcidamente revelado aos que obsessivamente esperam por respostas (ou até justificações) ao sinal que Tujiko tem à direita dos seus lábios. O fã deste tipo de divas há-de sempre ter o seu quê de perseguidor. Blurred in the Mirror, assim, como, em parte, 28, servem de cofre a anzóis aleatoriamente distribuídos por telegramas que revelam apenas o suficiente da verdade e, com isso, facilitam as coordenadas de que o admirador anónimo necessita para saciar a sua necessidade física de pop enigmática.

Curioso é dar conta de que a chave para essa charada esfíngica pode estar ambiguidade de “embalo” enquanto termo que pode definir o movimento que convida o berço à sonolência, a turbulência de um momento em mar alto e, no Brasil, a euforia provocada pelo consumo de drogas. A música de Tujiko é naturalmente dada à gestação de “embalos” que cada um traduz sentimentalmente conforme sua vontade. A interpretação japonesa da palavra-chave convida com cortesia a que cada indivíduo lhe aplique a funcionalidade que mais convier ao seu capricho. Tujiko Noriko pertence ao bolso da camisa que se encontrar mais perto do coração.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com

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