DISCOS
Seu Jorge
Cru
· 03 Nov 2005 · 08:00 ·
Seu Jorge
Cru
2005
Wrasse


Sítios oficiais:
- Seu Jorge
- Wrasse
Seu Jorge
Cru
2005
Wrasse


Sítios oficiais:
- Seu Jorge
- Wrasse
Agora que a Internet proibiu um meio limitado de cultivar caprichosamente os seus segredos, sucedem-se situações imediatas em tudo semelhantes à seguinte: Cidade de Deus dá a conhecer ao mundo Mané Galinha e, antes que o berimbau se atreva a uma primeira nota, já algum japonês de gosto exótico ensaia timidamente o sotaque carioca à frente de um laptop Toshiba. Sejamos francos: muito deve a internacionalização explosiva de Seu Jorge ao realizador Fernando Meirelles e à bomba de cinema latino que realizou. Some-se a isso uma enorme dose de talento, um songwritting à flor da pele e as músicas de David Bowie cantadas em português em Um Peixe Fora de Água, e o culto em torno de Seu Jorge torna-se tão robusto quanto imparável. Ainda assim e antes da travessia do Atlântico, Jorge Mário da Silva percorreu os anos de formação ao lado da banda Farofa Carioca e por lá foi alcançando mestria nos géneros que dele fazem um embaixador musical canarinho: samba, funk carioca, choro actualizado. Esses foram anos suficientes para que uma facção significante e incorruptível do seu país natal “cansasse” de Seu Jorge. Assim seja. A julgar pelo primeiro álbum a ter direito a distribuição mundial – Cru - a Europa tem mais que muitas razões para estimar e acolher Seu Jorge.

Apesar de ter aproveitado o balanço oferecido pelas participações em filmes abundantemente aclamados, o alinhamento oportuno de ocasiões favoráveis ao sucesso de Seu Jorge não seria contudo suficiente para manter activa a parcial euforia que o músico faz despoletar por onde passa. Tal como faz antever o seu título, Cru aparenta uma carnalidade que só podia partir de alguém que sabe o que é encostar o pé calejado ao piso rude do morro. O samba só o é quando floresce radiante e quando faz - quem com ele contacta - sobrevoar acima da favela condenada aos reveses da sua disposição vertical (onde “o de cima sobe, o de baixo desce”, como cantava o eterno Chico Science).

Cru é simultaneamente concreto no seu desfile de contos urbanos (“São Gonça” descreve uma ruptura sentimental com a crueza de um documentário) e propício a providenciar escape a quem desespera por finalmente encontrar as maravilhas ao Rio de Janeiro, tal como promete o emblemático sambinha. Cru é, aliás, um álbum meditativo quanto à complexidade do tempo. Seja no delicado encanto de Bola de Meia (lição de mestre na arte de “como tornar musical a voz sem ter de cantar”) a apelar ao tempo como curativo para a cicatriz amorosa ou no condensado histórico social de “Eu sou Favela”. Aquela noção pessimista do tempo que tudo destrói tem no carisma de Seu Jorge um temível opositor, tal é a credibilidade com que insinua que o samba a tudo subsiste.

A globalização é cada vez mais uma via-rápida com dois sentidos. Há uns anos, Michael Jackson demonstrava o seu zelo pela segurança das crianças da favela e optava pela problemática zona urbana como locação para o teledisco de “They Don’t Really Care About Us” (afirmação que se viria revelar errada algum tempo depois, quando o mundo não tirava os olhos de Jacko). Actualmente, o “hype” faz escala nas metrópoles brasileiras: a princesa revolucionária M.I.A. faz da sua paixão pelo funk de favela uma bandeira e os Arcade Fire há bem pouco tempo ensaiaram um tropicalismo fúnebre ao arriscarem ao vivo uma versão do clássico “Brazil”. Seu Jorge serve como representativa moeda de troca por parte do país da Ordem e Progresso. Cru é ilustre e substancial no seu veraneio pelos géneros tornados especiarias exportáveis. Surpreendente é o facto de Seu Jorge cumprir essa rota sem nunca perder o norte à genuinidade e convicto de que conferir uma alma ambiciosa à sua jóia não faz do ourives um estrangeirado mercenário.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
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