DISCOS
Crooked Fingers
Dignity and Shame
· 18 Set 2005 · 08:00 ·
Crooked Fingers
Dignity and Shame
2005
Merge / Fargo / Ananana


Sítios oficiais:
- Crooked Fingers
- Merge
- Fargo
- Ananana
Crooked Fingers
Dignity and Shame
2005
Merge / Fargo / Ananana


Sítios oficiais:
- Crooked Fingers
- Merge
- Fargo
- Ananana
Tourada é crime. Passa também - a partir de Dignity and Shame - a servir de mote temático a um crime passional cometido por Eric Bachmann, a omnipotente mão compositora que levou os Crooked Fingers a agarrarem a tauromaquia pelos cornos neste disco. O outrora líder dos Archers of Loaf deixou-se contagiar pela febre de arena e empenhou-se na composição de um álbum conceptual que servisse de memorial à lenda do toureiro espanhol, Manolete. Se excluirmos o diferendo em termos de sugestões sexuais, as pretensões de Eric Bachmann não divergem muito das que levaram Madonna – empenhada em mostrar ao mundo que podia ser Evita Perón - a convidar o matador Emilio Muñoz para contracenar consigo no teledisco de Take a Bow. Ambos sublinham os traços que tornam mítica a figura do toureiro: a postura erecta mantida de bandarilhas em punho ou nos braços das divas de alta sociedade, a aura de quem vive os seus dilemas avaliados por aplausos, a virilidade do homem que domina a besta animal (ou o contrário, quando a coisa não corre bem). É certo que tudo isso resultava às maravilhas em função de uma Madonna em amadurecimento pós-clímax-Erotica. Como requintado invólucro para Dignity and Shame, servirá apenas para despistas a fome a sedentos de canções que sobrevivam a mais que um punhado de escutas.

Dignity and Shame é também um disco onde a masculinidade é chamada a depor. Talvez porque cada garrafa de tequilla pode também ser um ponto ser retorno, o toureiro Manolete encontrou no México a casa de partida ideal para rumar em direcção à decadência. Pela mesma tabela, os Crooked Fingers aproveitam o disfarce do sombrero para camuflarem as emoções de uma paixão intensa, a angústia imposta pela distância (que o tema-título trata de adensar) e o fatalismo de quem seduz a morte como ganha pão. “Islero” – nome do touro que ceifou a vida a Manolete – traz à baila esse fatalismo. Muito se aproxima a guitarra dedilhada na faixa inicial daquela que conhecemos a Gustavo Santaolalla, músico que dava alma a Amor Cão com os seus temas e interlúdios. Também nesse brilharete do cinema mexicano existia um protagonista – El Chivo – perdido numa vida de vagabundo que o separava da dignidade. Dignity and Shame será apenas a berlinda de sentimentos em que Bachmann vestiu a pele mítica de Manolete – ou de El Chivo, se assim preferirem as fãs de Garcia Bernal – como forma fantasiosa de enfrentar fantasmas e vivências por digerir que são suas mais do que dos personagens.

Eric Bachmann encontra-se em transe latino, como se lhe tivesse sido delegada (pelo diabo de saias) a tarefa de condensar Los “La Bamba” Lobos e outros dignos representantes da bandeira Tex-Mex numa releitura americanizada da vida loca levada pelo toureiro Manolete. Todos sabemos dos resultados obtidos no cinema com os remakes de comédias francesas e filmes de terror asiáticos. Mantém-se o conceito e derrama-se a essência na altura em que se descobrem os primeiros sinais de plasticidade aos intérpretes. “Twilight Creeps”, por exemplo, resulta enquanto dueto que une as vozes de Bachmann e Lara Meyerrakten numa ternura quase boémia, mas não escapa a parecer acessória num disco cujos excessos nunca chegam a ser devidamente compensados pelo talento de Bachmann na execução da sua folk assombrada. Pois se ocasião reclamava por arranjos micro-orquestrais (e aí estamos bem servidos), teria de ser a veia clássica a assegurar a manutenção disso mesmo. Dignity and Shame acusa desgaste cedo demais.

Num plano imaginário, Dignity and Shame podia ser o disco gravado pelos Calexico no dia em que trocassem a Tucson natal pelo Nebraska de Bruce Springsteen. Recomenda-se, portanto, a todos os que não torcerem o nariz à miscelânea imposta por esse cruzamento de territórios. Este álbum morre na praia, dignificado pela ambição do conceito e envergonhado por ter não ter obtido a melhor execução para o mesmo.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com

Parceiros