DISCOS
CocoRosie
Noah's Ark
· 14 Set 2005 · 08:00 ·
CocoRosie
Noah's Ark
2005
Touch & Go


Sítios oficiais:
- Touch & Go
CocoRosie
Noah's Ark
2005
Touch & Go


Sítios oficiais:
- Touch & Go
Bem aventurados sejam os animaizinhos que, emparelhados de forma alheia ao sexo que os distingue, rumam à Arca de Noé. Salvem-se hipopótamos bailarinos, texugos perfumados, babuínos com os pescoços cobertos por pérolas. Improbabilidades zoológicas constantes da fantasia que as CocoRosie pintam a lápis-de-cera berrante no alegoricamente bíblico Noah’s Ark. Certamente que o tema não surpreenderá aqueles que escutaram “Jesus Loves Me” ao debute e muito menos os que observaram o imaginário pagão das CocoRosie nas imagens projectadas em concerto. Ao segundo disco, as irmãs Casady enveredam por um antecipado terreno pantanoso, sem sequer disporem de fundações e soluções criativas que lhes permitam caminhar à tona do lodo. Arriscam fundir espiritualidade com ambiguidade queer, aplicar um cada vez mais esbatido a um cenário bíblico. Ao pé descalço que se enterrara no lodo com a insinuação religiosa do álbum anterior, sucede agora um atrevido tronco. Fosse interpretado à risca e merecedor de régua puritana, e Noah’s Ark ainda teria direito a manchetes sensacionalistas. No fundo, as CocoRosie procuram apenas encorajar ao florido espírito de paz e amor, independentemente da orientação sexual. Contudo, a madeira desta arca é inflamável e a resistência da estética cute associada às CocoRosie já ardeu.

É sabido que a inocultável estranheza de La Maison de Mon Reve fez estalar - um pouco por toda a web - uma pequena guerra civil entre convertidos e detractores (eu próprio cumpri serviço ao lado dos defensores). Inadvertidamente, o cepticismo impunha às irmãs Casady duas tarefas a transpor para que a régia pressão inimiga se dissipasse: a primeira (impecavelmente superada, diga-se) incidia sobre a transposição da parafernália lo-fi - brinquedos Chicco e bricolage de banheira em partes iguais – para o palco, enquanto que a segunda estaria relacionada com o desafio que um segundo disco constituiria face a uma fórmula tão resistente quanto a mais sufocante das campanhas publicitárias. Os slogans de campanhas e refrães associados aos Dandy Warhols são universalmente atractivos, mas envelhecem depressa. O mesmo acontece com o factor novelty (aquele elemento cuja unicidade nos pisca o olho) que valeu o benefício da dúvida às CocoRosie. Durou o tempo de um sonho.

O facto de o material incluído em Noah’s Ark não ser propriamente novo constitui agravante adicional num disco que não perdia nada em ter permanecido disperso pelos imensos bootlegs que por aí andam. O Paredes de Coura do ano passado já tinha presenciado interpretações muito mais conseguidas de “Tekno Love Song” e “Brazilian Sun” (salvo pela participação de Devendra Banhart). A sensação é de que a hipnose gerada pelos concertos das CocoRosie era afinal burlona. As melodias que agora despertam junto de ouvidos sóbrios parecem menos atraentes com o semblante borrado pela maquilhagem de estúdio, se as compararmos com os equivalentes descarnados das prestações em Coura e no Lux.

Sofridamente, a Arca ainda se mantém à superfície durante metade do percurso. “Beautiful Boyz” – que conta com a participação de um Antony disposto a contribuir para a causa da livre ambiguidade – faz chegar a bom porto um tocante e convincente refrão antes que a histeria de Bianca tivesse conseguido anular a precisão dramática do autor de I am a Bird. O igualmente reconhecível “South 2nd” também escapa à banalidade da segunda metade do disco, mas, tal como tantas outras, tresanda à casa dos sonhos do debute. É aliás esse o mais flagrante defeito de Noah’s Ark: não se consegue livrar do odor bafiento que sobrou do primeiro disco.

Talvez por isso as faixas que passo a citar sejam recomendáveis apenas aos entusiastas da naftalina. Não há palavras para "Bear Hides and Buffalo", que procura à força ser encantadoramente subtil e acaba por se resumir a uma opereta que tem por intérpretes as irmãs Casady, três gatos pingados e o cavalo russo chamado Jingão. A certa altura o canto tenor de Sierra confunde-se com o relinchar do cavalo, e a coisa assume os contornos de uma proximidade naturista que não andará longe do bestialismo. Há ainda tempo para as incorrigíveis “The Sea is Calm” e “Armaggedon”, que deixam os nervos em franja, a paciência por um fio e fazem temer o pior a um futuro próximo que se adivinhe às CocoRosie.

E onde ficou “Left-Hand Shoe”? Desconhece-se o paradeiro à faixa mágica que, nos dois recintos acima mencionados, resultou em inesquecíveis momentos de sedução. Presume-se que o sapato não tenha servido ao pé da Cinderela.

À primeira oportunidade de que dispuseram enquanto anfitriãs, as CocoRosie enclausuraram os seus reféns em câmara onírica e por lá soltaram gás aromático. Falta agora coragem à mão que fecha a turbina e interrompe o transe desgastado. Noah's Ark navega à deriva um mar de incertezas e ondas clonadas a ondas anteriores. Não ata nem desata, repete-se e empata. Enfim, parece desesperadamente perdido no dilema de um sabonete por resgatar ao chão de um chuveiro público.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
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