DISCOS
V/A
Untitled Songs
· 01 Jul 2005 · 08:00 ·
V/A
Untitled Songs
2005
Sirr


Sítios oficiais:
- Sirr
V/A
Untitled Songs
2005
Sirr


Sítios oficiais:
- Sirr
Qualquer obra musical que, pela sua abrangente influência, fosse capaz de incentivar os Beatles a uma maior apetência por metódos experimentalistas (pela mão de McCartney) e os Sonic Youth a adoptarem o nome que têm, só podia ser digna de uma grandiosa homenagem. Assim acontece com “Gesang der Jünglinge”, a determinante composição do pioneiro alemão – na área da electrónica - Karlheinz Stockhausen que conta com quase meio século e, contudo, parece ainda capaz de provocar entre os artistas afiliados à Sirr (e outros tantos convidados de honra) inquietude e agitação criativa equivalente à gerada há 49 anos atrás.

Tendo em conta que seria necessário uma tese para analisar aprofundadamente a composição que serve de mote ao duplo Untitled Songs, limite-se a um parágrafo o essencial para compreender a importância da peça vanguardista. “Gesang der Jünglinge” fundiu pela primeira vez sons electrónicos e acústicos (as duas matérias-primas mais preponderantes nos lançamentos da Sirr), fazendo de ambos ocupantes de uma reexaminada noção de espaço sónico e auditivo. Inspirado numa parábola bíblica pertence ao livro de Daniel – em que crianças atiradas ao fogo escapavam ilesas e, por isso, entoavam cânticos de graça ao Senhor -, “Gesang der Jünglinge” traduz-se, em termos práticos, num inquietante exercício de preenchimento de espaço atendendo às potencialidades oferecidas pelo stereo (ainda que Stockhausen, tal como Pauline Oliveros, na altura já explorassem sistemas quadrangulares) e novas soluções resultantes da combinação de ressonâncias vocálicas com tons inéditos extraídos a elementos electrónicos.

Ainda que tudo isto pareça demasiado complexo, a obra máxima de Stockhausen comporta uma mística intemporal capaz de transcender a importância histórica que a torna obrigatória aos ouvidos dos académicos do género. Parece a sua universalidade catártica (trata afinal da sobrevivência a uma experiência limite) torná-la num reflexo distorcido impossível de relegar à indiferença. E assim acontece neste acervo de reinterpretações, desconstruções e exercícios que à matriz pilham apenas um pretexto: vinte e um intervenientes deixam-se contagiar pelo fascínio provocado pelas vozes na fogueira. Os resultados variam – o autismo de um par de exercícios torna-os invariavelmente irritantes -, sem nunca deixarem de revelar a mesma ambição que permitiu a Stockhausen o passo de gigante nos meandros da electrónica. Aqui, um passo atrás equivale a dois em frente.

Percorramos então os casos mais salientes. Sem perder de vista o original e incidindo essencialmente sobre a componente vocálica, o multi-facetado Janek Schaefer – dedicado a comprovar a música como a arquitectura do som – frisa o aspecto fantasmagórico da peça de Stockhausen ao formar um coro – unindo a sua a sete vozes femininas diferentes - que, à medida que se vai adensando, torna indistinguíveis as camadas sobrepostas. Andrew Deustch encurta a distância entre um universo pueril e um plano alienígena através da vibração de sons que abrange ambos os espaços sem se deslocar. André Gonçalves capta ressonâncias à sua casa-de-banho no exercício que mais flagrantemente reclama por auscultação. Jgrzinich aproveita a ocasião para proceder a um exorcismo de estática. Através da “síntese de espaços” elaborada a partir de sons adquiridos a uma só paisagem e a movimentos humanos e mecânicos, Maksim Shentelev dá forma a um ambiente tão perturbante quanto aquele que nos deixava os nervos em franja em Massacre no Texas. As faces disformes deste estranho oculto provocam um nervoso irracional e, quando conseguem enovelar os ouvidos em casulo, alguns destes exercícios chegam a ser experiências extremas. Anthony Pateras & Robin Fox, por exemplo, emulam a intensidade de uma corrida de Fórmula 1 usando apenas sons produzidos acima do pescoço. E isso é obra.

Curiosamente, as prestações inferiores chegam com o mais notório (a olho nú) dos nomes presentes na compilação: Yoko Lennon perde sete minutos em torno de um qualquer objecto ao vento (ao que parece). Apesar de revelador e encaixar no grupo como peça-chave, a digressão de Achim Wollscheid em torno de recipientes de som mais parece um atentado à paciência que um ensaio sobre a composição matriz. É por bem do equilíbrio do conceito que surge a reflexão da dupla @c (Pedro Tudela e Miguel Carvalhais) que atira o cosmopolitismo à fogueira e a partir das labaredas edifica um fatalista jogo de extremos. O interesse mantém-se por níveis elevados enquanto Asmus Tietchens transforma “Gesang der Jünglinge“ num exercício de mímica que resulta num estranho discurso quase ditatorial.

Maior do que a vontade de assinalar “Gesang der Jünglinge” como obra essencial à compreensão dos fundamentos da electrónica, parece ter sido a convicção dos presentes em provar a sua pertinência e substancial omnipresença quase 50 anos depois. Não tivesse Stockhausen arriscado a fusão, e parece-me pouco provável que a banda-sonora de Akira (a cargo do colectivo Geinoh Yamashirogumi) fosse tão avassaladora quanto é e o impacto dramático das armadilhas Dolby Sorround profundo ao ponto de encher de pipocas o tapete das salas de cinema. A influência do génio perdura e conhece em Untitled Songs manifestação à sua altura.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com

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