DISCOS
Arab Strap
Elephant Shoe
· 14 Abr 2005 · 08:00 ·
Arab Strap
Elephant Shoe
1999
Go Beat


Sítios oficiais:
- Arab Strap
- Go Beat
Arab Strap
Elephant Shoe
1999
Go Beat


Sítios oficiais:
- Arab Strap
- Go Beat
É sabido que a dupla funcionalidade da almofada faz dela um objecto perfeito e versátil. Ainda que convenha à madrugada televisiva impingir aos insones as vantagens de uma oitava maravilha ortopédica, anatómica e à prova de ácaros, as qualidades essenciais são as duas comuns a todas as almofadas: dispor de uma face que se possa encharcar de lágrimas e, caso necessário, de um reverso propício a um sono descansado. O próprio acto amoroso geralmente envolve o ajustamento da nuca a uma almofada, que, a bem do conforto, não deve estar húmida. Isto para esclarecer de vez um equívoco que desde sempre os Arab Strap trazem agrilhoados ao seu cambalear embriagado: a música dos autores do decisivo Philophobia não tem de estar invariavelmente ligada ao desgosto e depressão. Equivale a 229 o número de casamentos abençoados pelo Google entre os termos “Arab Strap” e “Prozac”, mas, ainda que adequado a servir os propósitos da auto-medicação, o trabalho da dupla satisfaz com igual mérito as necessidades da avestruz que enterra a cabeça no chão e as do nostálgico sempre disposto a reviver as mais queridas memórias de outrora.

Elephant Shoe (expressão usada pelo jovens escoceses como equivalente receoso para “I love you”) surgiu como ponto de situação na carreira da dupla formada por Aidan Moffat (voz e autoria das letras) e Malcolm Middleton (multi-instrumentalista). Depois de um disco tão determinante e aclamado quanto Philophobia, recorreram os Arab Strap ao aprofundamento na escala descendente da introspecção e intimidade como escape às pressões que sobre eles recaíam. Surpreendentemente, Elephant Shoe consegue ser ainda mais assumidamente Arab Strap (tome-se o nome como adjectivo a que tem direito): permanece intacto o (des)encanto de um discurso confessional que é levado a extremos a que a música raras vezes teve acesso de forma tão lúcida. É compreensível que as feministas não aceitem com bons ouvidos a forma como a lírica de Aidan Moffat trata as mulheres, pois não permite a apreciação superficial e exterior compreender que o homem se está a exorcizar e a arrepender no que canta falando.

A ambiguidade que referia no primeiro parágrafo aplica-se também a qualquer interpretação que se possa fazer da música dos Arab Strap. Se tudo em Philophobia remetia para a inevitabilidade do anti-herói romântico sempre terminar no lugar do cornudo (sejamos francos, o disco em nada abona a noção de fidelidade), Elephant Shoe documenta detalhadamente os despojos do que substitui ao que o “flirt” falhado do segundo disco tratou de interromper. Numa perspectiva pessimista, a música dos Arab Strap é associável ao sentimento que se vive durante o impasse entre o aperto de mão e a consumação horizontal. Serve, nesses casos, os propósitos fantasiosos de quem passa a noite de gin na mão a observar a mais decotada das manequins que dançam na pista da discoteca da moda. No pior dos casos, e arrisco aqui um freudismo muito caseiro, a repetição mecanizada dos loops básicos que os Arab Strap extraem à caixa de ritmos barata pode até satisfazer uma qualquer necessidade física comum a ambos os sexos, mas mais afecta ao masculino. Ficam a cabo do leitor as restantes ilações.

Cinefilamente falando, Elephant Shoe abrange a majestosa magia do widescreen (“Autumnal” comprova isso mesmo) e a marginalidade da fita VHS que é reproduzida vezes sem conta. Os escoceses são sobejamente conhecidos pelo fetiche que cultivam por vídeos caseiros produzidos na intimidade: o Tommy de Trainspotting filmava-os para serem visionados durante o acto e o jardineiro Willy d’Os Simpsons tinha uma vasta colecção deles. Ambos os personagens partilham da nacionalidade dos Arab Strap, que, por sua vez, parecem reproduzir essa noção de “cópia de cópia de cópia” na definição tosca que a caixa rítmica incute à sua música. O terceiro disco da dupla não derrapa sequer uma vez na combinação de “grooves” subterrâneos que selecciona para si. Acumula pontos de uma ponta à outra.

Elephant Shoe é a página do diário em que Laura Palmer contabiliza o número de parceiros sexuais, ao elaborar uma lista em que inclui apenas as iniciais dos seus nomes. Descobrir-se-lhe uma resolução é como tentar diferenciar a cor do céu aquando do anoitecer da tonalidade que este assume pela aurora. Não fosse perceptível uma certa discrepância qualitativa entre a primeira e segunda metade do disco, e Elephant Shoe seria ainda mais grandioso. Ainda assim, representa, juntamente com Philophobia, prova irrevogável de que, para compreender o “songwriting” da década de 90, é obrigatória a passagem pelo universo Arab Strap.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
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