DISCOS
Vince Guaraldi
A Charlie Brown Christmas
· 23 Dez 2004 · 08:00 ·
Vince Guaraldi
A Charlie Brown Christmas
1965
Fantasy


Sítios oficiais:
- Vince Guaraldi
- Fantasy
Vince Guaraldi
A Charlie Brown Christmas
1965
Fantasy


Sítios oficiais:
- Vince Guaraldi
- Fantasy
Cantava aquela islandesa - que fica bem em todas as fotografias - que não há lógica no comportamento humano. Não haverá pelo menos lógica que resista à temporada natalícia: colmatam-se lacunas de um ano inteiro no espaço de uma semana que seja. Durante aproximadamente 168 horas vive-se uma maratona emocional onde cada um faz os possíveis para sobreviver ao furacão ou atender às exigências do espírito natalício, conforme sua vontade e disposição. Quem nada quer com a coisa, quase sempre vê-se obrigado a pactuar com ela para não arriscar o embaraço de uma demonstração de afecto (daquelas com laçarote) unilateral. Este ano pedi ao Pai Natal uma nova aptidão: a de hibernar. E, como tenho sido um bom rapaz, já no próximo ano poderei, durante a fatigante semana, recolher-me ao sono profundo escutando Brian Eno e periféricos, e A Charlie Brown Christmas - para que também eu, entre um mar de Zês, possa viver o Natal inconscientemente.

Recaiu sobre Vince Guaraldi a responsabilidade de criar música adequada à série de animação Os Peanuts. Dizia-se sobre o músico, o qual já tinha elaborado uma composição de jazz encomendada por uma Catedral de prestígio:"Se Vince Guaraldi foi capaz de escrever música para Deus, poderá certamente escrever para Charlie Brown.".

Ainda que as expectativas parecessem facilmente superáveis, não seria de esperar, no entanto, que o californiano correspondesse ao que lhe era requisitado com a proeza de conseguir agradar a miúdos e graúdos quase despercebidamente. Invertendo a apetência de cada geração, fez com que os pais - à mercê da carga nostálgica da sua música - se revissem nas criações animadas de Charles Schulz e subliminarmente cativou nas crianças um precoce gosto por jazz que permaneceria arquivado na memória até um dia ser cultivado. Paralelamente, e à semelhança de muitos outros "cartoons", Os Peanuts representavam, enfim, um grupo de miúdos (e suas mascotes) sujeito a preocupações e dilemas que as crianças e adultos encaram (e interpretam) de diferente forma.

No que a música para animação diz respeito, não é sequer comparável o registo de Guaraldi ao de qualquer compositor afeiçoado ao formato Disney: a produção do falecido pianista só chega a ser subjectivamente dramática e não espalha pelas suas notas dispositivos de sensibilização fácil. A soltura do seu jazz é sim propícia à livre interpretação de quem escuta e imagina. Para isso muito contribui a insinuante bossanova (uma das bases da formação musical de Guaraldi), que, a espaços (raros), ao invés de conduzir à paisagem suburbana coberta de neve associada à série, mais facilmente remete para o tropicalismo de uma praia do Rio de Janeiro. Sem interferir na disposição dos elementos, as composições de Guaraldi limitam-se a servir de subtexto ao universo pueril de Charlie Brown e companhia. A sua ternura é tão inesgotável quanto sublime, remetendo quem ao seu encanto se sujeita a uma dependência igual à que Linus sente pelo seu cobertor.

Apesar de ambíguo na sua execução, A Charlie Brow Christmas é, sem margem de dúvidas, o mais temático e bem conseguido dos discos de originais centralizados n'Os Peanuts (A Boy Named Charlie Brown e Oh, Good Grief compõe a trilogia). Talvez por conseguir equilibrar num clarividente equinócio de tonalidades a diabrura e jovialidade das faixas referentes aos personagens ("Linus and Lucy") e a ternura (jamais plástica) das melodias relativas à quadra natalícia. Destaca-se dessas uma que merece todos os elogios que lhe possam ser tecidos: "Christmas time is here", que, além de já ter sido imortalizada como "standard" da música jazz, conhece reaproveitamento numa versão que os Belle & Sebastian gravaram para uma Peel Session natalícia e na banda-sonora do eternamente subestimado Os Royal Tenenbaums (não me atrevo a acrescentar o título em português). Se o que subsiste passa a ser clássico, então o que dizer de algo que sobrevive ao tempo transversalmente entranhado em múltiplas componentes? Absolutamente obrigatório e digno de ser promovido a património da música.

Não creio, porém, que fosse essa a motivação do pianista de bigode farfalhudo. Algo de tão puramente áureo só pode ter origem na entrega incondicional de alguém apaixonado e nunca no seu pretensiosismo. A acrescentar a isso, A Charlie Brown Christmas tem uma capacidade que não encontro noutro disco: quase me dá vontade de renegar ao direito à hibernação que o Pai Natal há-de deixar no meu sapatinho.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com

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