DISCOS
Cibelle
Cibelle
· 18 Jul 2004 · 08:00 ·
Cibelle
Cibelle
2003
Ziriguiboom
Cibelle
Cibelle
2003
Ziriguiboom
Quando, numa qualquer movimentada noite de São Paulo, acabou em palco com um homem alto e misterioso, Cibelle sabia que tinha encontrado tudo aquilo que queria. Esse homem era Suba, o produtor nascido na Jugoslávia que se encontrava a trabalhar em algum material para ser editado. O enlace musical entre os dois músicos resultou em São Paulo Confessions, um dos mais inovadores discos da música electrónica brasileira da década de noventa, onde Cibelle oferece a sua voz em temas como “Tantos Desejos”, “Sereia” ou “Felicidade”. Tragicamente, Suba viria a falecer num incêndio no dia 2 de Novembro de 1999, e é precisamente a ele que é dedicado este primeiro disco de Cibelle, a menina camaleão.

Quatro anos após o desaparecimento de Suba, Cibelle reflecte sobremaneira a influência musical e pessoal e todos os ensinamentos que Suba transmitiu. Cibelle, que sempre esteve rodeada por poesia, televisão, rádio e representação, escreveu quase todas as músicas e letras – algumas foram escritas antes de conhecer Suba, outras apareceram precisamente na semana de gravação do disco -, que são cantadas ora em Português, ora em Inglês, ora misturando ambos os idiomas de forma harmoniosa. Cibelle, que assim como Bebel Gilberto ou Nina Miranda trabalha a partir da Europa, fez-se reunir de um vasto leque de músicos oriundos de vários pontos do planeta: os percussionistas João Parahyba (Trio Mocotó) e Eder Rocha (Mestre Ambosio), o pianista cubano Pepe Cisneros, Ross, o veterano Johnny Alf, Ross Godfrey (Morcheeba), o guitarrista e compositor Ari Moraes, o rapper Xis, o guitarrista e baixista Richard Harrison e os baixistas Serginho Carvalho e Robinho, entre outros músicos. Cibelle contou também com a ajuda do produtor Apollo 9, assim como com a de Chris Harrison e Pete Norris (Morcheeba), que misturaram o disco em Londres.

Cibelle é, pois, resultado da confluência de várias sonoridades. Dos ambientes tranquilos do jazz à exaltação do samba, passando como não poderia deixar de ser pela música electrónica e pela bossa nova, Cibelle é um disco diversificado e refrescante. A voz de Cibelle é divertida, suave como uma brisa de Verão, e muitas das vezes profundamente sensual. Logo em “Deixa”, a canção que abre o disco, é possível confirmar tudo isso. “Deixa” é um colorido e luminoso pedido à acalmia, à plenitude: “Deixa ser cor / De azul de ser você / Deixa o tempo parar / Deixa ser cor / De azul de ser você / Deixa o tempo passar”. “Só sei viver no Samba” começa com a percussão espaçada, e depois segue com uma guitarra acústica de som latinizado. Aqui, Cibelle afirma a sua paixão pelo samba, seja ele “samba de roda, ou batucada, samba de noite no arada, samba que nunca vai ter fim”.

“Hate” é tropical, traz areia nos pés e um dilema para a cabeça de Cibelle: “I love you so much when you're near / Yet I hate you so bad when you make love at me / I hate you so bad when you're near / 'Cause I know you wanna say things but you never do / I love you so much when you're inside me / Yet I hate you so bad when your eyes I can't see”. É uma irónica visão do amor, dos desencontros e contrariedades que pode provocar. “Waiting”, por incrível que possa parecer nasceu de uma ida a um supermercado. Cibelle gravou o som de uma máquina registadora e de um frigorifico e comunicou a Apollo 9 que queria utilizar esses sons na construção da música. A esses samples juntam-se a hipnotizante linha de baixo, a percussão partida em vários pedaços, a voz puríssima de Cibelle e toda uma camada ambiental que confere a “Waiting” um tom descontraído, quase chill-out. “No prego” é uma curiosa mistura de batidas latinas, um trombone, guitarras e jogos de palavras, e “I’ll be” é uma canção de promessas, de intenções: “I’ll let you live inside of me / Let me give you a daughter / Feel life through my skin / See the world through my eyes”. Constrói-se calmamente, por entre linhas de baixo vagarosas e teclados mornos.

“Train” é misteriosa, inquieta, sensual. Cibelle afirma estar sentada num comboio que a leva para nenhures, e ainda tem tempo para dar um ar de sua graça na língua francesa. “Inútil paisagem”, escrita originalmente por Antonio Carlos Jobim, aparece aqui transformada pela voz doce de Cibelle e pelo tom enrouquecido de Johnny Alf, numa versão sonhadora e impregnada de secretismo. Quando Cibelle deixa sair “Mas pra quê, pra quê tanto céu, pra quê tanto mar, pra quê / De que serve esta onda que quebra e o vento da tarde / De que serve a tarde, inútil paisagem”, soltam-se os pássaros, o sol toca ao de leve o mar que, já escurecido pela proximidade da noite, reflecte uma vivência, ou duas. “Um só segundo” é uma canção electrónica, de batidas fortes, estonteantemente melódica e ambiental. “Pequenos olhos”, a canção que fecha o disco, é despida de grande instrumentação, e desenvolve-se em tons jazz.

Para alguém que tem como principais fontes inspiradoras nomes tão distintos como Nina Simone, Tom Jobim, Björk, Jackson do Pandeiro, 4hero, Ella Fitzgerald e Matmos, Cibelle acaba por ser uma aprazível combinação de vários estilos musicais, vários tons e várias cores. Por vezes é contemplativo, por vezes é gracioso, orgânico - Cibelle afirma que não consegue fazer música de outra forma que não seja a orgânica - ou até mesmo humorado. mas é acima de tudo uma grande estreia a solo de uma voz que não podia ficar simplesmente guardada numa caixa para a posteridade.
André Gomes
andregomes@bodyspace.net
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