DISCOS
Richard Youngs
Airs of the Ear
· 25 Abr 2004 · 08:00 ·
Richard Youngs
Airs of the Ear
2003
Jagjaguwar


Sítios oficiais:
- Jagjaguwar
Richard Youngs
Airs of the Ear
2003
Jagjaguwar


Sítios oficiais:
- Jagjaguwar
É um prazer falar de discos como este. Só um tipo descomplexado e com eles fora do sítio ousaria enfrentar os críticos míopes que (não) o esperam à saída do estúdio, e gravar uma peça desta singeleza anti-digestiva. É um pouco como quem se dedica a escrever isto ou aquilo com a ponta do lápis mais afiada. Findo o dia, que interesse têm os detractores quando a música é de um certo arremesso indie, esgalhado para ferir e lubrificar todos os canais sensoriais?

Dar a conhecer Airs of the Ear ao comum dos entusiastas das artes é o mesmo que lançar pérolas a porcos. Ninguém se lembra de repetir ad nauseam o mesmo verso ao longo de mais de 17 (dezassete) minutos. Pois é o que acontece em “Machaut’s Dream”, um tema que se encosta, em ambiência (e sonolência), ao smart ass dos Elbow quando escreveram "Don’t play Coltrane, you’ll sleep at the wheel". Não que Richard Youngs dê ares de Elbow (que, apesar de terem media darling escrito na testa colectiva, até são bons), antes pelo contrário. Somente que a faixa dá para adormecer ao volante. Ponto final.

O homem é de Glasgow, na Escócia, e só isso basta para ter estilo no barómetro de coolness deste escriba. Ao passar em revista os discos de Youngs, tem-se a sensação que o músico gosta de contemplar longamente o seu umbigo. Mas imediatamente se percebe por que se não dedicou ele à microbiologia marinha ou à tectónica de placas. Minucioso e minimalista na composição, maníaco mas ainda minimalista nas letras. Ei-lo no melhor de dois mundos, o da tal genealogia indie e o da confrontação regressiva com a imagem do Eu. Nem sempre os dois universos caminham rua fora de mão dada.

Richard Youngs teria no divã de Freud um excepcional pasto criativo, não fosse o psicanalista ter o “cancro para a cura” (conferir com os Eels) e não o que ele efectivamente precisa, um médium que lhe diga, de uma por todas as vezes, que ele não pertence a este mundo. Que a sua música é assombrosa, assombrada e tacteante. E que é uma estopada levar com ele mais do que uma hora, diga-se. Talvez por isso, mas acreditemos que não, o disco não ultrapassa a marca dos 40 minutos.

Um descobridor de emoções, eufemismo barato para “artista” no glossário mental de quem não sabe o que fazer da vida, merece respeito quando desde o advento dos anos 90 conserva o mesmo estilo hermético. Do tipo “venham conhecer este meu mundo, reles mortais, se são capazes”. Se o não fizerem ou desistirem a meio, é igual para ele e para quem já o conhece. Ele não é gajo para ter o orgulho ferido por muito tempo. Tem um pouco mais do que isso com que se preocupar.

Há aqui cenas que cabiam numa lost session de Jim O’Rourke ou The High Llamas, tal é a desfaçatez com que cria peças que no limite fazem sangrar os ouvidos. A começar, “Life On the Stream” é um irresistível petardo pop que fala da vida para não falar da morte. Da vida na vertigem do instante, na poeira que enche ambas as mãos. E não é tudo isto a morte? Talvez. De qualquer forma, Airs of the Ear dá para entranhar melhor quando não se está em coma.

Segue “Oh My Stars” se o amigo leitor ainda não puxou a ficha da tomada. Deslumbrante e soltinho, assim a atirar para o asfixiante número especial de corrida. O típico coração ao pé da boca para não falhar os preliminares. O sexo vem a seguir, mas com muito carinho. Chegou a “Fire Horse Rising” ou a sua mãe já lhe pediu para estender a roupa? Aqui Youngs diz não perceber e força o experimentalismo que lhe atravessa a mente e os dedos.

O melhor do disco é o dedilhar, o passear os dedos pelas cordas, mas também os detalhes de microscopia tecnicista de quem tem pachorra para levar as canções para lá dos quatro minutos do catecismo pop. E de quem tem vista para o mar, claro. Ali em “Fire Horse Rising” nota-se o banjo, um órgão (Casio?) e um baixo limpinho. E há também as modulações e as flutuações (quase, quase imperceptíveis) de voz. Temos a guitarra acústica em todas as músicas e a guitarra eléctrica também em todas, excepto em “Halifax Amore”, um peso morto no disco, bela como só a noite. Depois vem “Machaut’s Dream” a finalizar com theremin (é conferir ali em cima). Tudo composto por Richard Youngs, com Ben Swanson na masterização.

Devoto das gravações domésticas, Youngs pinta as suas telas folk com o mesmo ardor com que Jean-Michel Basquiat coloria os seus quadros, só que com menos borrões. A diferença está em que o primeiro é eminentemente rural, enquanto este era levianamente urbano. Mas depois há muito de um no outro, ou quase. Colagem forçada? Compre o amigo leitor este disco e visite uma boa galeria de arte, e logo perceberá a mesma textura, a mesma saturação nauseante, transpostas da imagem para o som e deste para aquela.

Só muito raramente Richard Youngs dá concertos, diz-se que prefere dedicar-se a tempo quase inteiro à função de colunista e autor de dicas para pratos vegetarianos. Um músico com esta pinta só podia gostar de seitan, tofu e macrobiotices avulsas. Enfim, considerações de quem tem telhados de vidro. O disco, esse, é mais do que bom.
Hélder Gomes
hefgomes@gmail.com
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