DISCOS
Kasai Allstars
Beware The Fetish
· 02 Jul 2014 · 17:47 ·
Kasai Allstars
Beware The Fetish
2014
Crammed Discs


Sítios oficiais:
- Crammed Discs
Kasai Allstars
Beware The Fetish
2014
Crammed Discs


Sítios oficiais:
- Crammed Discs
A descoberta das kalimbas eletrificadas congolesas foi um dos marcos da música da década de 10. Através da série Congotronics, pudemos tomar contacto com a música de ponta criada e desenvolvida em Kinshasa, graças à intuição demiúrgica do saudoso Mingiedi Mawangu. Ainda na década de 70 fundou o Konono No1 que, como todos sabem, adquiriu uma sonoridade particular graças a tentativa "fracassada" de Mawangu de eletrificar as kalimbas, o que ocasionou uma sonoridade estridente e distorcida que não só se adequou às expectativas do espírito eletro-electrónico europeu e norte-americano, como também se tornou marca registada das bandas de Kinsasha. O choque de sonoridades trouxe para alguns o problema do fetiche: seria essa música a representação de uma cultura, de uma tradição, de um estilo que, como todo folclore, não vive, mas sobrevive?

Dito isto, vale notar que não são poucas nem frágeis as contradições imanentes ao título do novo álbum do Kasai Allstars, banda que surgiu a esteio dos Congotronics. Beware the fetish, em português, "cuidado com o fetiche", é uma advertência repleta de significados. Ela adverte para o carácter vivo, crítico e criativo do grupo. Num universo habituado a descodificar as expressões africanas sob o signo do folclore, da tradição e da interdição, este aviso vem bem a calhar.

A começar pela própria composição do grupo, formado por quinze instrumentistas oriundos de cinco bandas da província congolesa de Kasai, cada uma pertencente a uma tradição musical diferente: Songye, Lulua, Tetela, Luba e Luntu. Reunidos pelo produtor belga Vincent Kenis, a música do Kasai Allstars destitui o fetiche continental do "africano" em favor da ideia de que a música do Congo contém manifestações diversas e independentes. Outra contradição que seria preciso evitar é a ideia de que esta música é tributária de uma tradição que se sustenta à força de motivações "culturais". Esta ideia não parece de todo errónea, mas é preciso observar que a música do Kasai é resultado de uma atualização e miscigenação de muitas correntes tradicionais e contemporâneas, que percorrem a música congolesa de forma viva e presente. O seu significado não se esgota na ideia petrificante de "folclore", não é simplesmente música "tradicional". Trata-se de música criada agora e para o futuro, tão contemporânea como Animal Collective e Metá Metá.

Cruzamento cultural, experimentação e contemporaneidade atravessam as doze faixas de Beware The Fetish. Enquanto no seu primeiro álbum — In the 7th Moon, the Chief Turned Into a Swimming Fish and Ate the Head of His Enemy by Magic, de 2008 — pareciam apostar em improvisos sobre refrões estilo pergunta-e-resposta, esse segundo álbum demonstra que os Kasai Allstars tem fôlego suficiente para investir em maneiras originais e diversificadas de expor suas ideias musicais. Além das kalimbas eletrificadas, a instrumentação conta com percussões de aço, xilofones, guitarra e a força singular de seu coral, formado por vozes masculinas e femininas de artistas como Kabongo, Muambuyi, Tshimanga, Mi Amor, Tandjolo, Grand Prêtre e Mbuyamba Nyunyi, falecido recentemente. Essas sonoridades sobrepõem-se em momentos de expressão intensa, como no coral dissonante e percussão opulenta de faixas como "Thus Spoke The Ancestors", "Yangye, The Evil Leopard" e "Beware The Fetish", bem como nas tendências mais melodiosas de faixas como "The Chief's Enthronement/Oyaye" e "The Ploughman (Le Laboureur)", esta última com a participação de membros do Konono No1, Deerhoof, Wildbirds & Peacedrums, Matt Mehlan dos Skeletons e Juana Molina. Como outros grande discos desse ano — tais como os de Encarnado, de Juçara Marçal, Black Light Spiral, de Untold e 08.DD.15 de D/P/I — é um disco que não admite audições medianas em caixas de som medíocres, mas pedem concentração e bom volume. Um tour de force de 100 minutos, de um magnetismo inegociável, capaz de desenraizar crenças e pressuposições que estão na base de todo fetiche. Por fim, vale notar que Beware the Fetish soa como um álbum mais maduro musicalmente que o segundo disco do Konono N1, dando provas suficientes de que os Kasai Allstars não só têm futuro, como também aponta para o que de melhor podemos esperar dele.
Bernardo Oliveira

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