DISCOS
June Tabor
An Echo of Hooves
· 17 Jan 2004 · 08:00 ·
June Tabor
An Echo of Hooves
2003
Topic


Sítios oficiais:
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June Tabor
An Echo of Hooves
2003
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Em Setembro do ano passado, por ocasião da sua estreia, o documentário Freedom Highway deu nome ao mini-festival organizado pelo pólo cultural londrino Barbican . Ao longo de vários dias, com a temática assente no poderoso papel que a música e a canção teve nas lutas políticas e movimentos de libertação do século XX, foi possível assistir a concertos (na maior parte dos casos adoçados por entreactos em formato de entrevista) de intérpretes, tão díspares entre si, como eram os casos de Norma Waterson, Chumbawamba ou Many Dibango & Soweto String Quartet, ver documentários inteiramente centrados em “Strange Fruit” de Billie Holliday, ou no percurso dramático de Victor Jara (com a presença da viúva do mártir chileno) e, claro, assistir a Freedom Highway, súmula de todo o conceito explorado por detrás da iniciativa, onde os testemunhos de Elvis Costello, Tom Waits, Ani DiFranco, Emmylou Harris Peter Seeger e outros firmavam o poder transformador e reivindicativo da tradição oral e escrita, transposta ao longo do tempo – "You can take away the singer, they tell us, but you can’t silence the song".

June Tabor, também parte do elenco de Freedom Highway, acedeu ao convite para pequena actuação na milenar igreja de St. Gilles Cripplegate, com conversa conduzida por Phillip King (o realizador do documentário) que a apresentou como a "maior voz britânica", acrescentando que a mesma representa a "voz do futuro" e confessando que introduzir June aos olhos e ouvidos da audiência ali presente era, naquele mesmo dia, uma alegria desmedida apenas comparável à que havia experimentado quando a escutou pela primeira vez. A acompanhá-la, e ao contrário de Jack Nietzsche (com a London Symphony Orchestra) ou de John Cale (acompanhado da Royal Philarmonic Orchestra) aquando da gravação de álbuns em St. Gilles Cripplegate, tão-somente o fiel (e brilhante, refira-se) Huw Warren. Com ela, também a voz pura e imaculada que há décadas se desvanece por entre o peso da tradição milenar da palavra, do canto das ilhas britânicas, do lamento eterno e do registo incólume da perpetuidade da passagem do testemunho (a propósito de “The Writing of Tipperary” dizia, fechando os punhos e com a imponência de uma deusa: “canções como esta nunca nos abandonam, canções como estas deviam ser mostradas a todos aqueles que estão no poder: "Rememberance is very important, remember: Rememberance is very important”").

A relação e significância que pode ser encontrada naquela conversa a dois e no concerto daquela tarde foi a de os mesmos terem acabado por constituir uma fabuloso Storyteller da carreira e percurso de June Tabor e como tal, da própria génese deste novo álbum. Não será cedo para o deslindar como segredo, mas June Tabor é enlevo em qualquer interpretação, quer sejam baladas milenares anglo-saxónicas de weavers and spinners, ritos apalachianos, ou labour songs, quer se tratem de Richard Thompson, Elvis Costello ou Eric Bogle. A mesma que jura que após ouvir Anne Briggs (eterna reclusa da folk britânica) a sua vida mudou para sempre e desde aí soube que o seu destino era “sentar-se à beira da piscina e mergulhar”, mergulhar no canto imutável dos ínfimos contornos da existência humana. O ancestral do desígnio humano, a canção popular que é “Timeless”, essa é matéria que constitui boa parte do seu percurso e deste fabuloso An Echo of Hooves.

Decompor An Echo of Hooves acabaria sempre por ser tarefa infrutífera. Por entre a névoa e o raiar da luz ténue que paira sobre cenários de desolação, perda, sangue, suor, lágrimas, injustiça perdurante, maridos e amores perdidos, batalhas e intrigas medievais, a sua voz eleva-se em exercício de matemática pura coadjuvada (rumo à perfeição) pelas participações de Huw Warren (piano), Mark Emerson (violino), Tim Harries (baixo), Martin Simpson (guitarra) e as northumbrian pipes de Kathryn Tickell, revelando-se (uma vez mais e sempre) insuperável e um cosmos de beleza e fascínio. June Tabor que, decerto, é já aguardada no Olimpo, assina um dos melhores álbuns do ano transacto.
Nuno Pereira
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