DISCOS
Angelo Badalamenti
Music From Twin Peaks
· 29 Dez 2003 · 08:00 ·
Angelo Badalamenti
Music From Twin Peaks
1989
Warner Bros


Sítios oficiais:
- Warner Bros
Angelo Badalamenti
Music From Twin Peaks
1989
Warner Bros


Sítios oficiais:
- Warner Bros
Todos temos uma Twin Peaks dentro de nós. Não uma Twin Peaks-cidade, não uma Twin Peaks-série, mas uma Twin Peaks-atmosfera. Todos temos esconderijos, mistérios, fetiches ocultos, máscaras, segredos. Fingimos desde a alvorada do dia até ao momento em que caímos no sono, debaixo dos cobertores no Inverno ou em cima dos lençóis no Verão. Provavelmente, durante o sono, somos puros. Existe um podre debaixo de cada corpo são. Pelo menos, é esta a visão do Homem que David Lynch e Mark Frost pareceram querer passar para o ecrã de televisão, na transição da década de 80 para a de 90, quando se propuseram a escrever o argumento da soap opera que revolucionou esse pequeno aparelho que, já na altura como hoje, oferecia aos espectadores mais do mesmo.

Essa Twin Peaks que passa agora, de novo, no pequeno ecrã numa terça à noite ou mesmo a que vive desde e para sempre na nossa mente parece não se querer calar. Nem o sistema de silenciamento no correr das cortinas desenhado por Nadine resultaria neste contexto. «Há sempre música no ar», diz o Dream Man a Dale Cooper, o agente destinado a resolver o caso Laura Palmer, durante o sonho em que uma sósia (ou não) da falecida lhe segreda o nome do seu assassino. Há sempre um grito de desespero, uma respiração, um suspiro, uma cena de amor, uma dança, passos suspeitos, uma exaltação. Há sempre som, ruído, música. Quer na série, quer na mente do Homem.

Na série, desde o genérico inicial – com imagens de uma cidade nebulada e sombria a fazerem-se acompanhar do tão memorável quanto sempre misterioso «Twin Peaks Theme» - aos créditos finais – com a imagem de uma Laura Palmer aparentemente feliz e inocente e o «Love Theme From Twin Peaks» em fundo a fazer crescer a vontade de regressar a este mundo – há música em todo o lado. Os momentos de suspense, a cena da descoberta do corpo de Laura Palmer, a dança de Audrey ou até mesmo as cenas de amor entre Donna e James não teriam o mesmo impacto sem a música criada por Angelo Badalamenti – colaborador de Lynch desde Blue Velvet (1986) - para cada um dos momentos. Música, diálogos e imagens confluem numa unidade, a tal atmosfera. É neste sentido que poder-se-á conceber a ideia de que o humor, a tensão, o sarcasmo e a ambiguidade vividos por cada uma das personagens que habita Twin Peaks ganham uma nova dimensão quando a música vem socorrer as palavras e as imagens que não têm força suficiente para viverem por si.

Angelo Badalamenti – acompanhado de Kinny Landrum, Eddie Dixon, Al Regni, Julee Cruise, entre outros - imprime a esta banda sonora um grandioso trabalho de ambientes, mesmo que por meio de instrumentos convencionais como o piano, o sintetizador, as guitarras eléctricas, as percussões, o clarinete ou o saxofone. Torna o estranho mais estranho, torna o cool mais cool, tendendo umas vezes para os devaneios jazz («Dance Of The Dream Man», «Freshly Squeezed» ou «Audrey’s Dance»), outras para os sons graves e medonhos de um pesadelo («The Bookhouse Boys» ou «Night Life In Twin Peaks»), ou ainda outras para as epopeias orquestradas em crescendo constante («Laura Palmer’s Theme» e «Twin Peaks Theme»). Restam ainda as três grandes «canções» interpretadas pela voz etérea e dreamy de Julee Cruise (com a soberba «Nightingale» a sobrepôr-se às também boas canções que são «Falling» e «Into The Night»).

É notório que Badalamenti – senhor com formação clássica e discípulo de Ennio Morricone – é mestre na arte do «tragicamente belo» que se conjuga na perfeição com as histórias repletas de surrealidade e de paixão de Lynch. Também é patente que a fórmula para os seus trabalhos posteriores se encontra por aqui: as bandas sonoras de Mulholland Drive e Lost Highway respondem por si, mas sendo Music From Twin Peaks a fórmula inicial, há que lhe dar todo o mérito: porque é viciante, mesmo que as variações de um mesmo tema não sejam de todo uma grande alegria para o ouvinte; porque é envolvente e faz-nos sonhar e acreditar que ainda existe dignidade na Terra mesmo que Twin Peaks o negue.

Peçam algo bonito e escuro, que cresca até um climax poderoso. Muito facilmente Angelo Badalamenti levantará a mão e dar-vos-á em minutos um «Laura Palmer’s Theme» a piano. Com sorte, verão Laura Palmer, de vestido rasgado, sorrateiramente a abandonar a floresta (onde escondemos os nossos segredos), a dizer-vos olá. E com mais sorte ainda, não desaparecerá. Com as corujas... ou talvez não. A cantar «our hearts will fly with the nightingale» ou não...
Tiago Carvalho
tcarvalho@esec.pt
RELACIONADO / Angelo Badalamenti