DISCOS
Set Fire To Flames
Telegraphs In Negative / Mouths Trapped In Static
· 04 Mai 2003 · 08:00 ·
Set Fire To Flames
Telegraphs In Negative / Mouths Trapped In Static
2003
Fat Cat


Sítios oficiais:
- Fat Cat
Set Fire To Flames
Telegraphs In Negative / Mouths Trapped In Static
2003
Fat Cat


Sítios oficiais:
- Fat Cat
Ontário, Canadá, 2002. Um velho celeiro que faz lembrar uma catedral. A algumas centenas de quilómetros, do outro lado da fronteira, um colectivo decide, com justificações inspiradas nos antigos westerns, o rumo a dar à geopolítica através de guerras que combatem os perigos das armas sofisticadíssimas dos países do Médio Oriente. Do lado canadiano, um outro colectivo, bem menos mediático, parece prever e absorver os ecos dessas guerras (que, na altura, ainda não tinham começado) e transformá-las na única arma que conhecem, a música, recorrendo ao uso de sons quase tão perturbantes como o ribombar das bombas que “chovem sobre Badgad”, como a RTP não se cansou de exibir gloriosamente como um troféu de caça. Mas as fontes da música dos Set Fire to Flames são muito mais diversificadas, sendo esta um conjunto de fragmentos, colados de forma inexplicável e ininteligível para quem ouve; é impossível destrinçar e arranjar uma lógica satisfatória para todo o álbum, a que não será alheia a forma como foi feito. Encarcerados no velho celeiro apenas com um 24-track e um camião com material, à procura de um retiro simultaneamente individual e colectivo, sob o efeito do sono ou de drogas, os membros dos Set Fires to Flames (provenientes da constelação de Montreal, com estrelas como GYBE!, Le Fly Pan Am ou Exhaust) construíram composições difíceis, dispersas, caóticas, desconstruídas.

A noção de tempo-espaço não sofre adulterações pop, e por isso estamos à mercê dos 13 músicos canadianos. Podemos espreguiçar-nos nos drones, aninharmo-nos no silêncio ou perdermo-nos nas repetições, que o efeito narcótico está sempre lá. “Telegraphs in Negative / Mouths Trapped in Static” não é senão um imenso medley de estados de consciência que mudam ciclica e progressivamente, de acordo com as passagens musicais, sem no entanto nos libertar da prisão em que subitamente nos encontramos, algures no armário, junto aos esqueletos. E é por isso que este álbum é tão grande, tão cru, tão esticado. A linguagem dos Set Fires to Flames foca cada nota e cada instrumento (sejam estes os microfones que permitiram os ‘field recordings’ que colocam o celeiro como uma referência omnipresente no álbum, os soundscapes de guitarras, os instrumentos de sopro, os metais, as gravações de conversas), sem a urgência do formato canção; a metáfora do celeiro/catedral, despido, quase a cair, abandonado, assenta que nem uma luva à própria arquitectura das músicas.

Constituído por dois CDs, cada um com um nome diferente, não se pode falar de um só álbum. “Telegraphs in Negative / Mouths Trapped in Static” aborda tanto a paranóia como a euforia, embora esta bem mais contida, e presente essencialmente em “Mouths Trapped in Static”. O momento mais genial acaba mesmo por ser a última música, um medley de cinco minutos e trinta e seis segundos chamado “This Thing Between Us is a Pickety Bridge of Impossible Crossing/ Bonfires for Nobody”, tão ou mais intenso que os cento e tal minutos do resto do álbum. Com os seus ruídos, os sons insólitos, os silêncios, é uma síntese perfeita e a forma mais bela que poderíamos ter de acabar de ouvir o colectivo canadiano. Não esquecendo algumas similitudes com os primos próximos GYBE!, os Set Fires to Flames ostentam porém uma identidade muito própria, mais suja e paranóica, e a audição cuidada das suas obras é uma experiência e uma aventura indispensável.
Nuno Cruz

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