DISCOS
Angelo Badalamenti
Mulholland Drive OST
· 02 Mai 2003 · 08:00 ·
Angelo Badalamenti
Mulholland Drive OST
2001
Milan Records
Angelo Badalamenti
Mulholland Drive OST
2001
Milan Records
«Blue Velvet», 1986. Primeiro cruzamento entre o mundo cinematográfico de David Lynch e a música de Angelo Badalamenti. Desde então, os ambientes ambíguos e surrealistas criados para os filmes e para as séries de televisão da autoria de David Lynch passaram a viver, lado a lado, com a música majestosa de Badalamenti. Desde então, a música passou a tomar um lugar crucial na cinematografia de Lynch, não como mero fundo às imagens, mas tornando-se, antes, parte integrante dessas mesmas imagens. Foi assim com «Twin Peaks’ Theme», que ainda hoje ecoa na cabeça de milhares de aficcionados pelo fenómeno que constituiu a série, em plena alvorada dos anos 90. E foi ainda assim em 2002, quando saímos da sala de cinema com o tema principal de «Mulholland Drive» na cabeça, caldeado com as ideias indefinidas que o filme nos provocou.

Entrando, calmamente, no universo da banda sonora de «Mulholland Drive» deparamo-nos (como é, aliás, hábito e familiar para quem conhece os trabalhos anteriores de Badalamenti para bandas sonoras) com múltiplas variações do tema principal da longa-metragem, servido aqui de arranjos orquestrais de luxo (como também já é regra) da responsabilidade da City of Prague Philharmonic, e com alguns temas inspirados na escola jazz, de teor ora esquizofrénico, ora cool. Seguindo esta descrição, pensarão os leitores que Badalamenti anda a repetir-se há mais de quinze anos. E, de certo modo, não estarão muito longe da Senhora Toda Poderosa, A Verdade.
Se a banda sonora de «The Straight Story» trouxe-nos, como novidade, a predominância da intercepção triste e nostálgica entre a guitarra acústica e o violino, «Mulholland Drive» surge-nos como o retorno às sonoridades exploradas em bandas sonoras como as de «Twin Peaks» ou de «Lost Highway». Porém, existe, como não existia em «Lost Highway», o culto do belo. A maioria das composições assinadas por Badalamenti para esta banda sonora compreendem momentos de uma rara beleza que, por si, quase que desculpam uma qualquer repetição das fórmulas vencedoras no passado.
Badalamenti é o mestre contemporâneo do classicismo simultaneamente trágico, negro e belo. Ponto final. Badalamenti é inovador. Muitos pontos de interrogação e alguns pontos de preocupação relativamente ao futuro da sua obra.
Da sua autoria, nesta banda sonora, há pérolas absurdamente belas como a exaltação depois de um silêncio medonho em «Mr. Roque/ Betty's Theme», o soberbo hino ao amor omnipresente em todo o filme, «Mulholland Drive/ Love Theme» ou o épico [mais um] «Diane & Camilla». Do lado do jazz, há o fantástico swing-minuto-e-meio intitulado «Jitterbug», o não menos cool «Dinner Party Pool Music» e ainda o jazz de saxofone esquizofrénico e surreal sob o nome «Silencio», para nos assustar por momentos. Por concretizar só mesmo a novidade.
Um facto é certo: Badalamenti continua a fazer a música ideal para o universo de Lynch e estranharíamos se algum dia víssemos um filme seu, despido destes sons, porque, de facto, simultaneamente, funcionam na plenitude. A questão primordial é se, na realidade, o produto, isolado de um contexto cinematográfico, sobrevive, sem que pensemos que existe alguma saturação e repetição, apesar da sua inegável beleza.


Além dos dez temas compostos por Badalamenti, a banda sonora presenteia-nos sete temas de uma diversidade tremenda. Três deles são da responsabilidade do próprio Lynch, (em parceria com John Neff) e bebem, ora de águas do rock progressivo em versão distorcida e hipnótica ( conferir « Mountains Falling»), ora da melancolia das melodias saídas da guitarra de Adrian Utley (Portishead) em «Pretty 50’s», tema ideal para acompanhar uma cena de ciúmes e de humilhação pública, da qual uma das mulheres de «Mulholland Dr.» é vítima.
De resto, há uma fantástica interpretação solo, em castelhano, de «Cryin’» (de Roy Robinson) por Rebekah Del Rio, que nos aparece na famosa e surreal cena do Clube Silêncio. Há, ainda, blues em «Bring It On Home» e jazz em «The Beast» e, ainda, uma pequena incursão pela cançoneta dos anos 50 em «I’ve Told Every Little Star», interpretada por Linda Scott.
Num todo, «Mulholland Drive», a banda sonora, é uma peça contrastante e ambígua. Traz-nos, assim, por um lado, o tragicamente belo mas sem novidade de Badalamenti e, a contrapor, o ecléctico e o surpreendente, assinados aqui por gente tão diferente como Rebekah Del Rio, David Lynch, John Neff ou Willy Dixon.
No entanto, a acompanhar o filme, é quase perfeita.
Tiago Carvalho
tcarvalho@esec.pt
RELACIONADO / Angelo Badalamenti