DISCOS
Leyland Kirby
Sadly, the Future Is No Longer What It Was
· 05 Jan 2010 · 12:59 ·
Leyland Kirby
Sadly, the Future Is No Longer What It Was
2009
History Always Favours the Winners


Sítios oficiais:
- Leyland Kirby
- History Always Favours the Winners
Leyland Kirby
Sadly, the Future Is No Longer What It Was
2009
History Always Favours the Winners


Sítios oficiais:
- Leyland Kirby
- History Always Favours the Winners
Triplo álbum de música ultra-melancólica constrói manifesto sobre o tempo, o medo e a solidão na Internet. Leyland Kirby conclui a década com uma obra incomparável.
Sadly, the future is no longer what it was é um colosso de música para o grande exército de solitários treinado pela Internet. Esse é um dos fundamentos possíveis para um objecto perfeitamente intrigante, que encaixa quase quatro horas de composições, na sua maioria, ultrapassando (largamente) os dez minutos de duração. E tão megalómana estatura não só desvia Sadly, the future… de uma actualidade conformada, como reflecte a cegueira romântica de alguém que não está disposto a vergar-se à comodidade retalhada do MP3. A execução de tal visão implica, de facto, uma digestão demorada (são quatro horas, afinal). Adequadamente, o grosso do disco faz-se de matéria a ser processada por sensibilidades diferentes: secções de cordas emuladas por sintetizadores, melodias em decomposição, drones, desgaste, um piano dotado e anos de tristeza, obviamente.

O responsável por tudo isto, Leyland Kirby, britânico alucinado entretanto sedeado em Berlim, encontra outras explicações para o triplo álbum, que começou por ser um projecto de EP. Para ele, Sadly, the future… é autobiográfico na medida em que reflecte a sua ideia do futuro, os seus medos, desejos e fraquezas. A partir de uma impressionante amostra, Leyland Kirby faz-nos crer que carregou sobre si o peso do mundo. Os cenários que projecta envolvem uma angústia tal que o mais difícil é compreender como podem sequer gerar calor empático. A verdade é que existe uma luz que nunca se apaga quando o desespero cai como a noite (da mesma forma que a melodia nunca morre definitivamente por aqui). Ou seja, o mesmo tipo de optimismo circunspecto, que brilhava no escuro dos Swans e nos dramas de Angelo Badalamenti, resiste ao longo das quatro horas de Sadly, the future…. E essa é uma razão suficientemente boa para colocar Kirby entre os Swans e Badalamenti.

Apesar de ser um artista extremamente grato (leia-se o blogue), James Leyland Kirby nunca deixou de fazer os possíveis para ser esquecido ou tomado como um grande equívoco: enquanto V / Vm e durante 2006, atreveu-se a lançar um MP3 por dia, e, no papel de The Caretaker, esgotou as possibilidades de uma fórmula (existe um disco sêxtuplo!): distorcer os discos de salão de dança da década de 30 até que não sobrasse neles uma marca temporal específica (essa anulação é outra das marcas de Kirby). Logo, era provável que, por essa altura, escassa paciência restasse para um corpo musical à partida disfuncional e incomodativo pela sua ambiguidade (nunca é absolutamente agradável ou desagradável). Ainda assim, Kirby já provou, mais do que uma vez, estar certo e à frente do seu tempo: disponibilizou música online por um preço à escolha do comprador, muito antes do célebre golpe dos Radiohead, e lança frequentemente edições luxuosas (formato em voga nos anos de queda do CD). Sadly, the future… não deixa de ter o seu quê de tolo, é certo, mas Leyland Kirby é cada vez mais o criativo que torna direitas as linhas tortas.

O torto, neste caso, conduz muitas vezes ao imprevisível, num trajecto afectado pela desorientação de quem não encontrou o futuro prometido pela Internet e pelos filmes de ficção científica mais ingénuos. Se tentarmos desenhar um paralelo, é possível reparar que Sadly, the future… desfalece perante um enganoso ideal de futuro, tal como os Desintegration Loops, de William Basinski, desapareciam do espaço físico em consonância com a queda das torres, em Nova Iorque. Assim fragilizadas, muitas das composições soam ao último fôlego de algo que, em tempos, viveu em plena força: “I’ve hummed this tune to all the girls I’ve known”, por exemplo, podia acompanhar o final de um filme chinês triste, enquanto “A Longing to Be Absorbed for a while into a different and beautiful world” descreve a efervescência tóxica verificada nos últimos minutos de um apocalipse imaginado por John Carpenter. Esses e outros temas recordam também a sensação de se ficar acagaçado com um filme bizarro na RTP2, nos tempos em que a televisão ainda metia medo.

Recuperando a Internet como responsável pela profunda amargura aqui rendida, um disco tão neura como Sadly, the future… não destoaria como registo da ausência que sobra em fóruns e plataformas sociais desabitadas (Hi5?) –¬ ou isso ou um novo marco de música new-age reinventada na merda. A assombração que paira podia até integrá-lo nas muito discutidas noções de hypnagogic pop e hauntology, mas a dimensão da obra transcende ambos os termos. Aqui está, se quisermos, o melhor ou o pior disco da década. Pouco importa: Sadly, the future… neutraliza critérios por ser essencialmente um investimento sem qualquer medo de passar ao lado ou de ser recebido como uma aberração. Destaca-se, isso sim, como um destemido e inventivo disco paradoxalmente incidente no medo e na arte do enfadonho. Felizmente, o futuro ainda é capaz de nos surpreender com obras como esta.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com

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