DISCOS
Gas
Nah und Fern
· 15 Jul 2008 · 08:00 ·
Gas
Nah und Fern
2008
Kompakt / Flur


Sítios oficiais:
- Kompakt
- Flur
Gas
Nah und Fern
2008
Kompakt / Flur


Sítios oficiais:
- Kompakt
- Flur
Ou como um dos mais refinados monumentos híbridos de techno e ambient (perturbado) arriscou estabelecer um Antes e um Depois de Gas nos meandros da Electrónica Minimalista, onde a presença de Wolfgang Voigt impera.
Se o tempo for justiceiro, também Wolfgang Voigt acabará por ver o seu nome inscrito na base de um busto de mármore branco lapidado à sua imagem. Assim que chegar ao fim o retardamento que – por bem – separa Wolfgang Voigt de ser tomado como um clássico, é provável que as mais esclarecidas lojas de souvenirs de Colónia, na Alemanha, se apressem no fabrico de objectos simbólicos que proporcionem homenagem ao clarividente e ambicioso produtor de música electrónica nascido (e estabelecido) entre os limites da cidade que deu nome à água perfumada, mas de valor e influência apenas avaliável a uma escala mundial – onde figura destacadamente entre grandes como Aphex Twin ou Giorgio Moroder. Mesmo que essa hipotética aclamação (a ser apropriada pelo turismo alemão) careça de um ajuste que a confirme como realidade, já ninguém dúvida de que a música que Wolfgang Voigt produziu sob o disfarce (um de muitos) Gas é uma daquelas exportações germânicas que só por puro lapso não figura entre o patamar pertencente às salsichas de Frankfurt e motores de carros apreciados em todo o mundo.

Por maior que tenha sido a quantidade de factores - estritamente relacionados com a substância da música - favoráveis à determinação do fulcro Gas como canónico e essencial, não foram assim tão estáveis alguns termos logísticos que, a partir de certa altura, condicionaram a propagação do legado: ou seja, depois de conduzir o lançamento de quatro álbuns de validade inquestionável, Gas (1996), Zauberberg(1998), Königsforst(1999), Pop(2000), a influente e generosa label Mille Plateaux foi obrigada a fechar portas por efeito da falência do grupo que a geria e, com isso, também o seu catálogo ficou congelado. Por arrasto desse dissabor, a circulação normal das tais preciosidades cessou e as mesmas passaram a ser comercializadas a preços perfeitamente especulativos em lojas de discos usados. Enquanto isso e de modo invisivelmente gradual, Gas era um nome cada vez mais frequente nas órbitas reservadas à mais recomendável electrónica de final de milénio (e a misteriosa aura do artwork florestal presente nos seus discos algo altamente propício a gerar curiosidade). O conjunto de burburinhos formou um coro de ávidos e, para agrado desses e benefício de outros tantos, aí está a louvável reedição agrupada da tetralogia Gas - formada pelos quatro álbuns - a cargo da venerável e especializada Kompakt, também gerida pelo próprio Wolfgang Voigt. Nah und Fern não só recapitula o grosso de um percurso por si só capaz de desencadear a reavaliação da relação pessoal com a electrónica contemporânea, como transforma em sorte o azar que, por só por pouco, não encravou a circulação física de um documento que, perto de comemorar 10 anos, insiste em não demonstrar quaisquer sinais de envelhecimento.

Quais são então as características tão extraordinariamente excepcionais na fórmula Gas para tamanha pompa e bajulação? Provavelmente, e logo à cabeça do assunto, a genial golpada de produção desferida por Wolfgang Voigt, nas soluções vincadamente personalizadas que descobre para exercitar (e dignificar) os dialectos ambient e techno além de tudo aquilo que os banalize ou obrigue a rastejar por terrenos trilhados vezes sem conta – e tudo isto sem transparecer, no processo, qualquer sensação forçada de revolução maior ou aparato instalado para impressionar o burguês comum. Sem nunca se fixar num dogma formal e mantendo, mesmo assim, uma identidade soberana que trespassa parte esmagadora das suas faixas, toda a dimensão Gas não dedica especial esforço a adequar-se a expectativas (a desenvoltura etérea do derradeiro Pop, por exemplo, quebra rotinas que dávamos como asseguradas). É por isso que alguém, por mais familiar que seja com as artimanhas próprias do techno, estranha de imediato escutar o inevitável e constante ritmo 4/4 – dominante e opressor no fabuloso Zauberberg - remetido a uma adulteração que o torna praticamente único conforme é escutado na realidade paralela de Gas (nem tanto num Pop mais solto), onde surge sob a influência de um filtro que torna o kick (o impacto em cada um dos puns) mais polido e longínquo - como uma memória firme entretanto sujeita a um esmorecimento amnésico, como uma história contada na primeira pessoa posteriormente adaptada a lenda maravilhosa e impalpável, como um terramoto devastador a que só se escutaram as réplicas (coladas umas às outras) surgidas horas mais tarde.

A adesão sensorial à singularidade deste tipo techno, que brota de uma fonte tão distante que só pode ser miragem, não ocorre, contudo, “em seco” – isto porque a imensurável atmosfera Gas surge geralmente preenchida por todo um torrencial de variantes – quase indistinguíveis entre si – de um mesmo padrão de som (prolongado como reflexo do infinito) formado com base em samples obtidos à música clássica e orquestral, a instrumentos de cordas e sopro e também a uma mais declarada guitarra no caso da matéria que dá forma ao gélido capítulo Königsforst(que obtém o seu tecto de estalactites ao que aparenta ser o dedilhar de uma guitarra). Independentemente de, até aqui, ser ou não impensável a noção que declara como inconciliáveis as duas partes, o milagre Gas faz com que, a partir do momento em que é bem sucedido o seu volte-face, pareçam inseparáveis e mutuamente dependentes a palpitação crua do techno e toda a elegância e envolvência normalmente colhida ao ambient mais celestial e de facto GASoso. Ao reunir e aproximar os quatro álbuns num único lançamento, Nah und Fern intensifica a luz que podia faltar para entender o monumento Gas como estudo exaustivo dedicado às reacções do techno sob o efeito anestésico de uma produção que o camufla, levando a que os seus contornos mais identificáveis se percam numa bruma materializada em camadas.

Inteligentemente e ciente de que a repetição de padrões faz o hábito, Voigt efectua uma espécie de lavagem cerebral, através de subliminares meios mínimos, que assenta principalmente no estabelecimento da ilusão de que o ritmo persiste mesmo quando deixa de o ser e que as vagas de som continuado pairam sempre com a mesma intensidade e forma, quando também não é exactamente assim. E é tal a infiltração traumática de Gas nesse jogo de vai e vem e distâncias diferentes (Nah und Fern significa “perto e longe”), que, depois de prolongada exposição a esta tetralogia, torna-se elevado o risco de voltar a ouvir, logo de seguida, os discos de Stars of the Lid, ou de outra glória ambient de equivalente calibre, e crer que habita por ali o fantasma de uma batida que à partida teria sido aniquilada com a permuta de escutas. Nesses termos, Gas passa a ser bênção / maldição que se entranha profundamente na memória, além de santuário que, após pisado, não oferece via de retorno. Nah und Fern serve como régua para medição de tudo isso, como registo de um prolongado pico criativo por parte de um autor saliente nas suas qualidades e sobretudo como documento imprescindível ao entendimento do valor que a electrónica pode ter enquanto instrumento imprevisivelmente ambivalente nas ligações e simulações que exerce na mente, como se essa massa cinzenta fosse o software mais apto a ser reprogramado por um burlão tão brilhante quanto Wolfgang Voigt.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com

Parceiros