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Festival Para Gente Sentada 2004
Teatro António Lamoso, Santa Maria da Feira
1-2/10/2004


Reportagem de André Gomes
Fotografias de Carlos Oliveira

Em cima do palco descansam folhas, as folhas secas que o Outono tratou de fazer descer das árvores. Rodeado por arbustos, há um banco de jardim feito de madeira que parece querer abraçar quer os amantes, quer a solidão. Há dois candeeiros – um de cada lado – e mais alguns arbustos, num teatro que se vestiu a rigor para celebrar a chegada do Outono e a estreia de um tal de Festival para Gente Sentada, o festim que resolveu acolher meia dúzia de songwriters vindos dos Estados Unidos, do Reino Unido e até da Suécia. E foi precisamente o sueco Nicolai Dunger o primeiro cantautor a mostrar serviço; entrou em palco, segurou a guitarra nos seus braços como quem segura um filho e comentou: “Bem, parece que sou só eu e as folhas agora”. O seu nome pode ser estranho para muitos, mas o facto é que Dunger conta já com uma quantidade assinalável de discos e com o apoio de Will Oldham (Tranquil Isolation foi mesmo gravado com Will e Paul Oldham dos Palace Brothers). Se nos seus discos Nicolai Dunger conta com o ocasional colorido das cordas e com o doce balanço da percussão, ao vivo as canções despem-se até à sua essência (a folk) e são apresentadas em carne viva. No limite, a sua voz assemelha-se à de um Jeff Buckley, ou a um Van Morrisson de Astral Weeks. Há pinceladas de harmónica aqui e ali, e vocalizações pouco usuais. Há uma ou duas composições ao piano e uma confissão: “gosto muito de instrumentais”. Há um pedido de uma canção vindo do público e uma resposta bem humorada: “Essa é muito difícil”. A encerrar, há até uma canção, erguida pela sua guitarra em melódicas cascatas, que surge repetida no alinhamento – escrita por alturas dos seus vinte anos - pois Nicolai confessa ser da sua preferência. Mas faltou sempre aquela pontinha de magia da qual se fazem os grandes concertos.

O intervalo parecia fazer lembrar que Sketches (For my Sweetheart the Drunk) é uma colecção impressionante de grandes esboços (veja-se “The Sky is a Landfill”, “Everybody Here Wants You”, “Morning Theft” e “Vancouver”) e que o espírito de Jeff Buckley, dez anos após a sua morte, se encontra mais presente que nunca. À parte de tal beleza, preparava-se o palco para Sufjan Stevens, o autor de Greetings From Michigan: The Great Lakes State, uma deliciosa homenagem a Michigan: mal entrou em palco, apresentou-se e anunciou: “this one goes out to the one I love”. Ao princípio podia parecer uma dedicatória, mas aos primeiros acordes todas as dúvidas foram dissipadas: tratava-se de “The One I Love”, dos R.E.M., numa versão obrigatoriamente despida mas nem por isso desprovida de emoção. Rosie Thomas subiu ao palco – qual menina da meteorologia – para, com gestos mais ou menos precisos, ilustrar num mapa dos E.U.A. as indicações de Sufjan Stevens. O conceito do espectáculo é deveras interessante: depois de contar uma história tão auto-biográfica quanto possível e de forma cronológica, Sufjan apresentava a respectiva canção que escreveu sobre o sucedido. Contou-nos que, aos seus 14 anos, desenvolveu uma amizade com uma menina de 18 e que, apesar da diferença idades, passavam a vida juntos: quando iam ao shopping, era habitual – pois – acompanhá-la enquanto esta experimentava vestidos. Sufjan contava que, pela força da idade e por não possuir o dom do elogio, nunca chegou a elogiar convenientemente os vestidos da sua amiga, como lhe seria esperado. Mais vale tarde que nunca: “The Dress Looks Nice on You”, incluída em Seven Swans, o mais recente disco de originais de Sufjan, foi apresentada como sendo a canção escrita para dizer aquilo que nunca disse nos seus 14 anos. Surgiu também a delicadíssima “Romulus”, a comovente “For the Widows in Paradise, for the Fatherless in Ypsilanti” (onde se repete algumas vezes a frase mais sincera do mundo, “I’ll Do Anything For You”) – a canção que remonta aos tempos em que Sufjan jogava futebol – e aqui se destrói um mito – e parou numa cidade onde só parecia vislumbrar mulheres e crianças - executada no banjo, “Size too Small”, uma referência ao fato de dimensões curtas que levou no dia do casamento da sua amiga, e ainda “Seven Swans”. Toda a evolução biográfica do “teatrinho” – apresentado ora na guitarra, ora no banjo - construído por Sufjan Stevens levou-o a apresentar uma canção sobre a altura em que deixou o Michigan em direcção a Chicago, para se tornar aquilo que é agora: alguém que aproveita todas as coisas pequenas, para construir grandes canções. Para o nosso próprio bem.

I let myself fall / I let myself fall / I let myself fall / In love with you”. Foram estas as primeiras palavras que se ouviram da boca de Rosie Thomas alguns segundos depois de entrar em palco e se sentar ao piano, de costas viradas para o público – facto pelo qual se desculpou prontamente. Continua tudo como havíamos imaginado: a voz de menina, o imaginário cor-de-rosa e a sensibilidade à flor da pele, os trejeitos vocais adocicados, a doçura estonteante, a simpatia e toda a timidez que resulta num tom de voz quase infantil. No fim de cada canção agradece com repetidos abanares de cabeça, um “thank you” quase amedrontado e algumas gargalhadas quase histéricas – que muito fizeram rir quem a ouvia. Alternando entre a guitarra e o piano, Rosie Thomas viajou especialmente por Only With Laughter Can You Win, mas não esqueceu When We Were Small, o seu disco de estreia. As suas canções, delicadas visões em forma de sonhos, estão repletas de pequenas frases, pequenas histórias de esperança, de mudança, de amor. Em “You and Me” fala-nos de como a união entre duas pessoas pode salvar vidas: “You and me / Me and you / There is so much that we’ve been through / Through it all I’ve come to understand God’s love”. Em “Red Rover” percorre-se histórias de infância e da admirável capacidade de se perdoar e deixar as coisas acontecer: “Don’t let her grow up to be like her mother / Heart so unconvinced and a world so undiscovered / Asking for forgiveness and not knowing how to forgive”. “I Play Music” é canção eminentemente auto-biográfica onde Rosie Thomas confessa ter tentado tudo até descobrir que a música era o seu único caminho: “So I play music, that’s what I do / And when I sing I lose myself / There’s nothing more I would rather do / Lord knows I’ve tried everything Else”. Sempre divertida, Rosie Thomas confessou que tentou basket mas que não conseguia manter o drible, tentou o voleibol mas que não ficou muito satisfeita ao saber do tipo de roupas que se usavam, a agricultura e o ballet. Levantou-se e mostrou, com passos gentis e rodopios, tudo aquilo que conseguiu aprender – e riu-se várias vezes com o seu próprio desastre. O público ria também, encantado com a sua doçura, visivelmente agradado com o concerto. Surgiram também “Wedding Day”, “Farewell”, “Gradually”, “Bicycle Tricycle” e uma versão – pois claro – de Joni Mitchell, a sua maior influência. A música de Rosie Thomas não colmata a ausência, mas atenua. E de repente, aquilo que se chamou de Festival para Gente Sentada mais parecia um Festival para Gente Abraçada - a contemplação a Rosie Thomas foi merecida. Afinal de contas, havia acabado de transportar uma boa parte da plateia para um estado onde se sonha acordado.

Assim como aconteceu com os Kings of Convenience de Quiet Is The New Loud para Riot on an Empty Street, também o Festival Para Gente Sentada (ou Abraçada) se mudou para o conforto do lar. As folhas secas de Outono foram substituídas por tapetes, o banco de jardim e os arbustos deram lugar a um biombo e a três gigantescas molduras – um prenuncio para a noite a guardar que se aproximava – rodeadas por uma enorme fita vermelha que pendia do tecto – o ideal seria imaginar que pendia o céu, só para abrilhantar as coisas. Desde logo foi possível observar que a segunda noite do “Festival dos Sentados” – como foi tantas vezes curiosamente abreviado – seria de devoção a Devendra Banhart. Mas primeiro, Kate Walsh, a britânica que visitava Portugal pela terceira vez (em 2004). Acompanhada do seu guitarrista - Rick Oliver – Kate Walsh apresentou mais uma vez as canções do seu álbum de estreia, Clocktower Park. O nervosismo natural registado nas primeiras actuações quase desapareceu – é agora uma mão segura que percorre as cordas da guitarra acústica pelas canções intimistas que a sua ainda curta vida – Kate Walsh tem apenas 21 anos – lhe fez escrever. Além disso, Kate Walsh mostrou ser menina para uma piada ou duas: confessou-nos que a sua guitarra é temperamental e precisa por isso de afinações constantes e mostrou ainda dominar alguns termos em português tais como “olá”, “adeus e “posso beber uma cerveja?”, expressão que – nas suas palavras – é de primordial importância. Mas no que diz respeito à música propriamente dita, Kate Walsh percorreu Clocktower Park em quase todas as suas canções: “Animals on Fire”, canção que compara o poder de uma paixão a animais em fogo, a solarenga “Quicksand”, “It’s Never Over”, a afirmação do sonho e da esperança, “Junebug”, “Impressionable” – o melhor tema do disco de estreia, transportador de uma imensa sensação: “Silence is the voice I miss the most” -, “Star” e “Holes in my Jacket”.

Para muitos desconhecido, Robert Fisher, o líder dos Willard Grant Conspiracy, entrou em palco para rapidamente manifestar a sua insatisfação por não tocar com a sua banda e anunciar que a sua actuação iria centrar-se essencialmente em canções sobre a morte. E assim foi. Mais uma vez, a guitarra acústica e uma voz. E algum humor. Fisher reportou-se à noite anterior para contar que, depois de recolhido ao Hotel, teve de lidar com a mais fácil das indecisões: escolher entre a cerveja e o whisky. Deixou para o público, a complicada tarefa de descobrir qual tinha sido a sua opção e prosseguiu com as canções. A sabedoria que Fisher possui caminhou sempre ao lado das suas canções e a melancolia também, de braço dado. Numa dessas canções, Rosie Thomas – sempre doce – e Nicolai Dunger deram uma ajuda na voz, e na harmónica respectivamente. Perto do fim, Robert Fisher apresentou mesmo aquela que para si é a canção mais triste que conhece, e não é difícil perceber porquê. A palavras tantas, Fisher faz quase lembrar Will Oldham - quando em “Death To Everyone”, do seminal I See a Darkness, diz: ”Death To Everyone is gonna come / And it makes hosing much more fun” - ao revelar tamanho pessimismo: “Suffering is gonna come / To everyone / Someday”.

Não vale a pena escondê-lo, o concerto de Devendra Banhart era a razão pela qual mais de metade das almas que enchiam o Teatro António Lamoso esperavam ansiosamente. Na primeira canção, Devendra fez-se acompanhar somente da sua guitarra mas a partir daí – para surpresa de muitos – fez-se acompanhar dos The Queens of Sheeba, a sua trupe: Andy Cabic dos Vetiver, Kyle Field dos Little Wings no baixo, Adam Forkner na guitarra e Jona Bechtolt na bateria. Por força das circunstâncias, as canções de Devendra Banhart, que em disco são pautadas por um enorme intimismo, ganharam um novo corpo – um corpo de banda. “Will is my Friend” surgiu, mais emotiva do que nunca, adocicada pelo baixo e pela guitarra e suavemente balanceada pela percussão. Devendra teceu elogios à comida, ao vinho do Porto, ao vinho Moscatel - chegou a ler o rótulo de uma das garrafas que se passeavam pelo palco – mas deixou um aviso: Santa Maria da Feira precisa de uma loja de fatos; fatos dos Power Rangers, das tartarugas-ninja ou apenas de tartarugas ou ninjas. Houve tempo para uma canção dos Little Wings, outra dos Vetiver, uma cover de Neil Young e uma jam do caralho – sim, do caralho – que se deve ter prolongado por uns quinze minutos: ouviram-se dedicatórias a John Fahey, elogios multi-continentais, gritos de “ It’s allright to be a white reggae troll” e “ I believe in Africa” e mesmo os sons do reggae - sim, porra, reggae. “This Beard Is For Siobhan”, repleta de la la la las, e “This is the Way” surgiram em versões fantásticas; também surgiram dois ou três encores, cada vez mais intensos e imprevisíveis – rondou sempre uma estranha atmosfera de nostalgia ou a sensação de se estar, de repente, na década de 70; um estranho sentimento de distanciamento do presente. Como reflexo daquilo que se estava a passar em palco, na plateia as coisas começaram a ganhar contornos de histerismo: pessoas em pé, constantes trocas de lugar, dança desenfreada, palmas, cânticos e um sentimento quase geral: aquilo que se estava a passar em palco tarde ou nunca será esquecido.


André Gomes
andregomes@bodyspace.net
01/10/2004