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Heineken Paredes de Coura 2006
Praia Fluvial do Tabuão
14-17/08/2006


“The rain falls hard on a humdrum town, this town has dragged you down.” - Morrissey

Chuva. Água caída do céu. Das nuvens. Numa cidade “humdrum”. “Humdrum” é banal, sem variedade, monótono. Paredes de Coura é uma vila monótona, tirando quatro ou cinco dias a meio de Agosto. Paredes de Coura é uma terra onde chove muito, mesmo em Agosto. Isso parece ter marcado a edição de 2004 do festival, e marcou também a de 2006.
Paredes de Coura é um festival que gosta de se afirmar como uma alternativa a todos os outros festivais ditos “normais” de verão. Um festival onde as pessoas vão apenas pela música e não pelo ambiente. Esta é uma meia-verdade. Há gente que vai lá para o ambiente, como em qualquer outro festival, como é óbvio, e há gente que vai lá para ser vista e para os comes e bebes gratuitos, como exemplificado pela enchente na área VIP no dia 14, e como exemplificado pela comida desaparecer em segundos. Mas é, sem dúvida, o melhor festival de verão de música não-assim-tão-alternativa, algo entre o mainstream e o alternativo, nunca chegando a ser assim tanto para a minoria que diz cobrir.
O cartaz deste ano não tinha a força do do ano passado, no geral, apesar de nomes bastante fortes. Havia bastantes nomes fracos, mas nunca fracos-fracos, um meio-termo entre algo inenarrável e algo que podia ser bom. Isto nota-se por bandas como os White Rose Movement, os Gomez, os Madrugada, os Warren Suicide, os Cat People, os Selfish Cunt, que compraram, ouviram e interiorizaram os discos certos, mas não souberam bem o que fazer com eles. Nunca chegam a ser maus-maus, são sempre melhores que muita coisa, mas isso não é suficiente e não é desculpa.

15/08

Depois de concertos enfadonhos (e alguns até irritantes, como é o caso dos Warren Suicide) no palco after-hours na noite de segunda-feira, o festival arrancou definitivamente ao pé do rio Tabuão, na relva, com a Zé Eduardo Unit. Zé Eduardo auto-descreve-se como um bandido do jazz português, veste, como é comum nas edições do Jazz da Relva, com uma t-shirt do rock’n’roll (outros usam t-shirts de Nirvana, ele usa uma t-shirt do mítico clube nova-iorquino CBGB’s) e faz versões com piada de Pedro Abrunhosa. Uma óptima forma de começar o dia com uma formação de luxo ao pé da relva.

White Rose Movement

Têm cortes de cabelo desgrenhados, daqueles que demoram horas e horas a conseguir. Alguns deles até têm o cabelo desgrenhado. Têm camisas abotoadas até ao último botão e calças pretas justas. Na cabeça deles, são a banda mais cool do mundo. Só que alguém esqueceu de lhes avisar que já não faz sentido, se é que alguma vez fez, o revivalismo barato e inconsequente dos anos 80. Podem desculpar-se, como os Bravery se desculparam o ano passado, com fazerem música para dançar. E fazem, e até certo ponto até são bem sucedidos nisso. Mas, tanto na pose quanto na música, esforçam-se demasiado para fazer algo que nunca conseguirão fazer.
O vocalista canta sempre num irritante falsete, a bateria nunca muda, os riffs de guitarra são aborrecidos, os de baixo, quando existem, são tão mal roubados aos de Peter Hook (Joy Division/New Order) que se torna insultuoso, as melodias enfadonhas de sintetizador foleiro não se desculpam só porque há uma rapariga minimamente atraente a tocá-las e, basicamente, tal como em qualquer outra banda que se dedique à enésima reciclagem da new wave, não há canções para justificar isso. Só têm tudo no ponto para fazer dançar.
Têm refrões com “tururu” e “aiaiaiai” e os seus sons “futuristas” que já eram datados na altura em que apareceram, ou seja, há muitos, muitos anos, conseguem transformar 15 minutos numa hora tormentosa. Dizem ser este o festival favorito de sempre deles, o que pode bem ser verdade, tendo em conta quanto as bandas parecem felizes por lá tocar. É pena que isso não se faça sentir na música.

Gomez

Os Gomez são ingleses mas gostam de se fazer passar por americanos. Do fingerpickin’ na guitarra eléctrica à voz rouca (e enfadonha) bluesy, aproveitam as tradições da música da América profunda para a sua música. “I think we all need to dance, ladies and gentlemen”, diz um dos três vocalistas que vão rodando de acordo com as necessidadaes das canções. Mas ninguém dança propriamente. Até porque a música não convida a isso.
Em poucos anos, passaram de cabeças de cartaz para banda mais ou menos de abertura, o que mostra como os seus fãs não são assim tão fiéis. Aliás, basta uma visita a uma qualquer loja de discos em segunda mão para confirmar isso: é sempre notória a quantidade de discos dos Gomez à venda. Há fingerpickin’ competente em guitarra eléctrica, há uma espécie de theremin que até funciona bem, há saxofones sintetizados que não, riffs rock’n’roll, mas não há nada de muito consistente na música dos Gomez. O tal vocalista farta-se de pedir às pessoas para se moverem ao som da música, mas continua a não ser bem sucedido. Há momentos interessantes, mas nem todos o são, e ver os Gomez acaba por ser uma experiência algo enfadonha. Ninguém se lembra bem qual era o fascínio que esta banda tinha, e, tal como os seus discos em segunda mão, continuarão a descer de escalão até serem totalmente esquecidos.

Madrugada

Há, num concerto dos Madrugada, um ambiente soturno, escuro, e não é só por os seus membros se vestirem de preto. Há baterias musculadas, guitarras vagamente surf e, especialmente, uma massa indistinta de canções. Nem a melhor canção da banda nórdica, “Majesty”, soa diferente das outras ao vivo, aquela que é, em single, uma anomalia na sua discografia. Não é que sejam realmente maus, mas podiam ser melhores, e isso faz toda a diferença. Não têm, neles, algo que os distinga, tirando um ou outro momento, e não são chamariz para ninguém. Servem, pura e simplesmente, para encher o dia.

Broken Social Scene

Os Broken Social Scene são um colectivo de Toronto. Têm 11 membros fixos, mas estes variam e podem ser substituídos. Mas há, neles, duas estrelas, dois membros do sexo feminino que são demasiado conhecidos para poderem fazer parte do colectivo a tempo inteiro. São Leslie Feist, conhecida a solo como Feist e Emily Haines, vocalista dos Metric. Há-de ser sempre difícil juntar tanta gente com tantos projectos, ainda para mais quando se toca num festivalzeco no meio do nada em Portugal onde são a quarta banda do dia. Isto acontece em qualquer caso em Portugal, se os também canadianos New Pornographers viessem cá, nunca viriam com Dan Bejar (apesar de já cá ter estado como Destroyer) e Neko Case. Temos de resignarnos a esse facto.
Só trazem três guitarras, mas não são realmente precisas mais. No Conan O’Brien tinham cinco e este pediu-lhes mais: “You need more guitars!” Mas alguém disse “You don’t need more guitars!” em Paredes de Coura e isso fazia todo o sentido. Sem a voz de Feist e de Haines, perde-se um bocado, e é por isso que os Broken Social Scene não ganham o prémio de melhor concerto do festival. Não é que não se esforcem, mas nunca conseguiriam fazê-lo.
Brendan Canning é a cara chapada do comediante Andy Dick, só que com barba. Algures durante o concerto, fala de amor entre homens, e diz que não é um festival até um homem em tronco nu saltar para cima de um amigo. E talvez tenha razão. A banda começa com “Jimmy”, um tema novo, com uma introdução da secção de metais - há dois trompetistas e um trombonista, que, quando não são necessários, tocam outras coisas, sempre num ambiente comunal - que evolui para um riff lento de guitarra e bateria relaxada mas musculuada, com falsete no refrão, passando logo para “Shoreline (7/4)”, algo difícil de fazer sem a voz de Feist, mas que não deixa de ser um belíssimo single pop. A instrumentação não é a mesma dos discos, onde usam banjos e outros instrumentos de cordas menos comuns. Mas funciona na mesma com as três guitarras, já que quase todos os temas têm arranjos diferentes ao vivo. “Fire Eye’d Boy”, por exemplo, ganha um “oooh” bonito antes do refrão. A banda pede palminhas em “Stars and Sons” e “Superconnected” tem uma muralha de guitarras que impõe definitivamente respeito.
Têm um bom baterista, capaz de manter os ritmos fora do comum e ainda pôr toda a gente a bater o pé ou a abanar-se, é esse o caso em bangers absolutos como “Shoreline” ou “K.C. Accidental” (melhor riff de três notas e freakouts de guitarra de sempre?), que fecha o concerto de forma sublime. Andrew Whiteman, o guitarrista que é também responsável pelos Apostle of Hustle, arma-se demasiado em guitar hero, com solos em praticamente tudo, alguns que funcionam, outros que nem tanto. Lisa Lobsinger, a cantora que serve de substituta às outras duas, safa-se bem, mas nunca é a mesma coisa. Como seria a versão de “Anthems for a Seventeen Year-Old Girl”, uma das melhores canções da banda, com a voz de Emily Haines ao vivo? Não se sabe, mesmo em disco não é a própria voz de Haines, está filtrada, e nunca será possível aproximar-se da gravação. Mas mesmo assim, não deixa de ser uma experiência avassaladora, o refrão de “park that car, drop that phone, sleep on the floor, dream about me” e a voz de Kevin Drew, o líder da banda, a ajudar, sussurrada. Há, nessa canção, algo a que se pode chamar um “crescendo canadiano”, no qual as bandas canadianas são exímias, uma explosão que se vai construíndo e é sempre uma delícia de sentir.
Mesmo sem membros-chave, os Broken Social Scene são monstros, uma força da natureza, algo indescritível. Um concerto mais fraco deles, como este, não é um concerto mau, até pelo contrário. É uma experiência extremamente positiva e é louvável poder ver-se em Portugal, apenas um ano depois do lançamento de Broken Social Scene, o terceiro álbum de originais, uma das melhores bandas de indie rock da actualidade, ou de qualquer outro género. Ainda por cima, sabendo que estão prestes a entrar num hiato. Portugal foi abençoado.

Broken Social Scene © Luís Bento

Morrissey

Steven Patrick Morrissey nunca foi boa pessoa. Mas, por outro lado, deu sempre tanto ao mundo e ajudou tantas vidas que isso parece desculpar quase tudo. É um dos maiores poetas vivos, uma das melhores vozes da música pop de sempre, e tem a arrogância e a hipocrisia para prová-lo. Alimenta-se dos fãs, dos fãs que o adoram intensamente, e transforma aquilo que para o comum dos mortais é uma fraqueza - a solidão - numa das suas maiores forças. Ao crescer, devia ser alguém com pouca auto-estima, mas alguém que conseguiu dar a volta a isso. Quando faz, algures durante o concerto, um comentário auto-depreciativo, não é como se não tivesse noção de que todas aquelas pessoas estão ali para o ver. Não é como se não soubesse que o adoram como adoram pouca gente. É apenas um resquício disso. É exactamente o mesmo que Jon Stewart exclamar, em plena apresentação dos óscares, “I’m such a loser.” Morrissey canta a dor e o sofrimento e a solidão e o não ser amado, mas tem uma banda com t-shirts a dizer “Morrissey”. É esta a dicotomia que atravessa toda a sua obra: a linha ténue entre a falta e o excesso de amor-próprio. Então, quando pede, num português pobre, “Paredes de Coura, ajuda-me”, não está mesmo a pedir ajuda. Não precisa de ajuda para nada. É, para muita gente, o mais perto que existe de Deus, e sabe jogar da melhor forma com isso. Entra ao som de “How Soon Is Now?” e, apesar da guitarra de Johnny Marr ser inimitável, a banda não se safa mal a tocar os temas dos Smiths. E são esses os temas que fizeram de Morrissey o que ele é, por muito bons que sejam alguns dos seus discos a solo - e alguns são mesmo bons - ou as suas canções, serão sempre relegados para segundo plano. O que é e não é uma pena.
A banda soa muito mais confortável e melhor a tocar os temas do último fôlego criativo do artista, que fizeram a maior parte do concerto, aquele que começou em 2004 com You Are The Quarry, como é óbvio, mais do que naqueles em que não sabe bem o que fazer, como os dos Smiths. Foi nesta altura que entrou definitivamente na idade adulta, entretanto fez 45 anos e passou de cantor das mágoas da juventude para crooner ao nível de Las Vegas, como exemplificado em Live At Earl’s Court. Claro que isto pode ter acontecido antes. O escritor Will Self, em 1995, deu a um perfil de Morrissey no The Observer o nome de “The king of bedsit angst grows up”. Mas estava a falar com um trintão e não com um quarentão. Morrissey parece ter ganho, nestes últimos anos, um charme e um carisma que não tinha antes, para além da sua voz ter melhorado, ficado ainda mais adulta. O que é estranho, visto que, quer se queira quer não, esta ter ficado para a História da pop com os Smiths.
Temos anónimos a tocar temas dos Smiths, não soam mal, porque quem os cantava está ali, mas não é bem a mesma coisa. Nunca poderia ser. Não têm nome porque o único nome que interessa é o de Morrissey, e é desta forma que o artista alimenta o culto. Mas também joga com isso, dizendo, quando apresenta a banda, que não tem nome. A passagem de nerd para superestrela não é um fenómeno anormal na pop, de Elvis Costello a David Byrne, de Rivers Cuomo a Kanye West, mas todos estes conseguem, lá do alto, manter algo que os remete para os tempos de juventude, para a adolescência estranha de fãs obsessivos de algo. Mas também, nada é normal em Morrissey. Há um solo de trompete mariachi algo livre em “The First of the Gang to Die”, o que é estranho, visto o gosto que Morrissey sempre teve, dos Smiths à carreira a solo, em usar sintetizadores que não devem muito ao bom gosto em vez dos instrumentos a sério, mas soa bem. E a sua voz também (se bem que ainda haja algumas desafinações ao vivo).
Morrissey está ali, em palco, magnificamente vestido, com uma presença inigualável, e alimenta-se e vive do amor que todas aquelas pessoas têm por ele. Porque um fã de Morrissey não é um fã de outro artista qualquer. É um fã dedicado, que conhece tudo, que vive e respira cada palavra, cada forma de verbalizar uma stiuação, um sentimento, um pensamento. Há, ali, fãs que estão pelos Smiths, mas também há, surpreendemente, uma camada jovem - sub-20 - que conhece de cor todos os temas de The Ringleader of the Tormentors, seja do single que passava em alta rotação nos ecrãs do Metro de Lisboa “You Have Killed Me” ou de “The Youngest was the Most Loved”, com o seu refrão de crianças a cantar “There is no such thing in life as normal”. E não há aqui nada de normal. Uma boa banda, uma voz maior do que a vida, e, sobretudo, uma presença fenomenal daquele que é o mais perto de Deus que alguma vez estas pessoas terão. E as pessoas entregam-se fortemente ao todo-poderoso que pode fazer o que quiser. Que faz o que quer.
Parece estar bem disposto. Faz comentários sobre o mundial de futebol, mas diz que Portugal não ganhou. Até parece importar-se com o público. Mas não. A meio de “Panic”, dos Smiths, a última canção, antes de pedir para enforcarem o DJ, Morrissey, um ateu, diz “Bye bye, god bless you” e sai do palco. Antes consegue, através de gestos, pedir à banda para parar de tocar. Entra no seu Mercedes e não volta mais. O público, que se tinha entregue totalmente, fica um pouco desiludido, mas este é o herói de toda a gente, é alguém que pode fazer o que quiser. E faz.

Morrissey © Luís Bento

Fischerspooner

Tiveram um êxito enorme em “Emerge”, um dos singles-chave do movimento electroclash. Só que, em 2006, ninguém quer saber disso. O electroclash provou-se um fenómeno extremamente limitado e datado e com muito pouca validade. Mas eles continuam por aí. Começam com uma versão dos Wire, “The 15th”, que funciona bem porque, basicamente, é uma óptima canção e nem eles a conseguem estragar. O resto é um espectáculo extremamente bem pensado e ensaiado, com uma forte componente visual, bailarinas e muita festa, mas com música enfadonha e aborrecida. Ninguém se lembra de nenhum tema dos Fischerspooner para além de “Emerge”, e há uma razão para isso. É a única canção memorável deles, e mesmo assim torna-se muito aborrecida à terceira ou quarta audição. Casey Spooner, vestido de uma forma inenarrável, deixa-a a meio, dizendo que é um artista e não pode tocar aquilo que as pessoas querem ouvir. Estaria a fazer troça de Morrissey? Não interessa, tem alguma piada, mas não muita. E, quando fecha o concerto com a versão completa desse tema, as pessoas continuam a rir-se da piada que são os Fischerspooner, mas pouco mais. Eles não se levam muito a sério, nem devemos nós levá-los muito a sério. 16/08

The Eagles of Death Metal

Depois dos portugueses Vicious Five, com os quais já foram gastas muitas linhas nesta casa, sobe ao palco a nova banda de Josh Homme (ex-Kyuss, Queens of the Stone Age). Só que sobe ao palco sem ele, só com o carisma e a enorme presença em palco de Jesse Hughes. São típicos grunhos americanos, da América profunda, camionistas de bombas de gasolina que se fartam de mandar piropos às miúdas e outras coisas que essa gente faz. Só que têm piada a fazê-lo.As letras são feitas de monossílabos, como todo o rock’n’roll deve ser, e a música é quase sempre igual: bateria a partir, riffs rápidos e muita cerveja. Há uma versão competente de “Brown Sugar”, dos Rolling Stones e há suor e muitas dedicatórias às senhoras. Um óptimo divertimento.

The Gang of Four

E eis que os estudantes de artes marxistas do pós-punk se encontram, anos e anos depois, velhos. Daqueles velhos que tinham antes uma banda e passaram os anos que demoraram a voltar a reunir-se a não fazer nada de especial. Vestem-se exactamente assim, como velhos sem estilo que querem parecer jovens. Mas, por detrás de todo o ridículo da idade que querem esconder, ainda conseguem soar estupidamente melhor que todas as bandas que, hoje em dia, os pilham sem vergonha. “Estupidamente melhor” também pode querer dizer “estupidamente alto”, já que o som da guitarra era ensurdecedor e o som do baixo também.
Entertainment! é o disco principal da obra deles, e é com isso que conseguem converter os fãs. Sempre foram música negra tocada por brancos ineptos, e ainda são, só que fazem-no com uma pinta que pouca gente desde os Stones fez. Há, durante todo o concerto, um microondas em palco, que é posteriormente utilizado pelo vocalista Jon King (nunca teve grande voz e agora ainda é pior) para servir de instrumento de percussão, algo que não faz grande sentido nem do ponto de vista visual nem do ponto de vista musical, mas não é propriamente mau.
As linhas de baixo de Dave Allen e as guitarras de Andy Gill continuam a ser umas das melhores experiências musicais de sempre, o funk visto por brancos que não era suposto serem bons a fazer aquilo mas acabaram por ser, misturado com o punk e com a política. São velhos, sim, estão velhos, também, mas tomara todas as reuniões ser assim e todos os imitadores soar assim.

Yeah Yeah Yeahs

Nos três anos que passaram desde a edição de Fever to Tell e do primeiro concerto entre Paredes de Coura, os Yeah Yeah Yeahs ficaram ainda mais famosos no mundo inteiro e em Portugal e descobriram, para além das guitarras acústicas, as baladas melosas, transformando-as em êxitos que se podem ouvir em qualquer loja de roupa de qualquer cidade europeia. Ao vivo, são sempre uma óptima banda, com a líder natural que é Karen O e os músicos extremamente competentes que são Nick Zinner e, especialmente, o baterista Brian Howe, que faz com que até os ritmos mais complexos pareçam fáceis de tocar.
Karen O é uma mulher histérica, totalmente exagerada, que adora gritar e saltar de um lado para o outro. Mas não é chata a fazê-lo, acaba até por ser adorável, na sua infantilidade chic (na setlist há coraçõezinhos e estrelinhas). Salta de um lado para o outro e grita muito e bebe água e cospe a água para cima dela própria e enfia o microfone na boca e salta ainda mais. E não se esquece de cantar. Está tudo no ponto, e há um guitarrista ajudante, Imaad Wasif, para ajudar o trio original. Não há a produção magnífica de David Andrew Sitek em palco, mas para compensar isso há um espectáculo extremamente bem sucedido, com canções de Fever to Tell e Show Your Bones. Não há grandes paragens entre os temas, “Maps” é introduzida como uma “Yeah Yeah Yeahs love song” e Karen O dedica-a ao amor de cada um dos três homens que a acompanham e depois ao seu amor, o público português. Da guitarra estratosférica à frase “wait, they don’t love you like I love you”, tudo está disposto para o máximo efeito emocional. Não é à toa que é um dos melhores singles dos anos 2000, e que a sua companheira, “The Other Side of Mt. Heart Attack” dos Liars de Angus Andrew, para quem a canção foi escrita, seja também uma das melhores canções desta década. Há algo de realmente comovente que transparece das duas canções provavelmente mais formatadas das duas bandas. A guitarra estridente de “Y Control” é disparada e não tocada, algo incompreensível tendo em conta que temos um músico extra em palco. E o sorriso de Karen O no final de “Turn Into”, tal como no seu vídeo, é uma visão deliciosa e uma das melhores do festival.
Os Yeah Yeah Yeahs são uma óptima banda, não só por terem um óptimo baterista, um óptimo guitarrista, um óptimo produtor e uma óptima líder, mas também por saberem bem o que fazer com isso. Há melodias e canções memoráveis e belíssimas, e até os momentos mais descontrolados são bem estruturados e pensados para funcionarem da melhor forma. É música com pés e cabeça.

Yeah Yeah Yeahs © Luís Bento

Bloc Party

Os Bloc Party lançaram Silent Alarm em 2005 e, basicamente, têm mais ou menos três canções. Têm a canção de amor, suave e discreta, com guitarras estratosféricas e palavras bonitas (“This Modern Love”, “Two More Years”, “So Here We Are”, “Blue Light”), o banger, a canção para partir tudo (“Banquet”, “Like Eating Glass”, “Pioneers”) e algo que fica no meio dos outros dois tipos (“Positive Tension”, “She’s Hearing Voices”). Não há grande variação, mas, se se estiver para aí virado, podem ser divertidos.
Kele Okereke, o vocalista/guitarrista, não tem grande voz. Mal consegue aguentá-la durante um concerto inteiro, e soa muito pior que em disco. Até o baixista canta melhor que ele. Mas isso não implica que não saibam dar um espectáculo. O público conhece todas as canções, especialmente “Banquet”, talvez o single menos irritante que já serviu de hino de campanhas da Vodafone. A banda está visivelmente excitada por estar ali, e Kele fala da chuva que caía o dia inteiro, com um sorriso estampado na cara por tocar para tanta gente que gosta da sua música. Os Bloc Party são uma banda de rock’n’roll à antiga, com inclinações para revivalismos do pós-punk, mas, mesmo soando sempre da mesma forma, soam a uma mistura das influências e nunca a uma cópia de algo. Soam a eles próprios.
É pena que não tenham mostrado, nos temas novos, os ritmos r’n’b e uma eclectização do seu som de que já falaram em entrevistas. Têm talento, mas continuam a precisar de algo que os distinga, algo que os faça serem maiores do que são. Há pormenores que existem em disco e adornam as canções, como as harmonias de vozes em “This Modern Love”, que falham, mas os Bloc Party não deixam de conseguir manter tudo vagamente interessante.

Bloc Party © Luís Bento

We Are Scientists

Os We Are Scientists não são assim tão maus, se esquecermos a voz do vocalista. "My body is your body" é uma das piores letras de sempre, mas ao vivo até são rapazinhos simpáticos e com alguma piada. Falam de como os Bloc Party poderão roubar o tema que tocam que ainda não foi gravado, e que soa como "Maps" dos Yeah Yeah Yeahs, mas foram os Yeah Yeah Yeahs a roubar aquilo. São, sem dúvida, uma das bandas mais inócuas do revivalismo pós-punk nova-iorquino, mas não fazem mal a ninguém e ainda bem. 17/08

Cat People

Mais uma reciclagem oca e vazia do pós-punk dos anos 80. Desta vez vêm de Espanha e fazem-no de uma forma minimamente competente, se nos esquecermos do sotaque irritante e dos problemas de som. Há uma versão de “I wanna be adored”, dos Stone Roses, que é particularmente insiltuosa e alguns problemas de som.

Shout Out Louds

Pelo nome e pelo lugar de origem - Suécia -, os Shout Out Louds parecem uma banda de rock’n’roll banal e oco que se acha a salvação do mundo. Felizmente, não são nada disso. Há um coro de crianças antes da banda entrar em palco, e, ao primeiro tema, mostram o power-pop solarengo com moog e riffs competentes no qual são exímios. A voz do vocalista é extremamente parecida com a de Robert Smith dos Cure, mas dos Cure só tiraram as partes felizes e não o ambiente soturno e negro e deprimente, mostrando uma agradável surpresa com trompetes sintetizados que não funcionam muito bem mas com melodias bonitas de glockenspiel.

Maduros

Um dia, alguns amigos, veteranos do rock’n’roll português, decidiram juntar-se e gravar uma versão de Clash. Acharam que tinha funcionado bem e juntaram-se mais vezes. Todos músicos profissionais, e todos bons músicos profissionais, esqueceram-se de algo fulcral: da música. Estes quarentões viveram os tempos mais movimentados e desregrados do rock português, as drogas, a loucura, tudo. E puseram Zé Pedro, um mito do rock, o guitarrista dos Xutos & Pontapés, a cantar.
Havia gente que pensava que Tim era um dos piores vocalistas rock de todo o sempre. Nada mais errado, e basta olhar para o lado dele para descobrir isso. A sua voz rouca, de quem é velho, de quem já viveu muito, e, ainda por cima, de quem quer ensinar aos jovens como se vive, é inenarrável. A música, essa, a puxar pelo punk ou pelo hard-rock, é banalíssima, mas também não irrita. O grande problema são as letras. “Aproveita bem o poder da tua juventude”, “O bom que esta vida tem, não sabes, não queres aproveitar” ou “Descobre as tuas capacidades, usa-os para o teu próprio bem” são algumas das pérolas lançadas, pondo todos os festivaleiros a rir bem alto. Ele tem boas intenções, ou parece ter, e diz que a banda só se juntou por amor à música, mas não há nada que se salve ali. A versão de “Call Up”, dos Clash, é competente, se nos esquecermos do sotaque mau em inglês.
Os membros deste “colectivo fabuloso”, todos veteranos do rock, incluem gente respeitável que devia saber melhor. Alexandre Soares, Jorge Coelho, Pedro Gonçalves e o filho do baterista dos Xutos & Pontapés (todos, segundo Zé Pedro, com o apelido “Maduro”) foram todos postos ali. Zé Pedro diz que o público é “resistente ao rock’n’roll”, mas, se é alguma coisa, é forte e resistente aos Maduros. Só assim se explica o facto de as pessoas não se terem ido embora com a chuva, já que era impossível conter o riso cada vez que Zé Pedro abria a boca. È necessário respeitar os veteranos, sim, mas torna-se difícil e penoso se eles continuarem assim.

!!!

Os !!! eram a única banda repetida do ano passado. Ganharam um novo horário, um pouco mais tardio. Musicalmente, não devia haver razões para repetirem. Mas poucas bandas são capazes de tocar basicamente a mesma coisa durante uma hora e pouco e não só mantê-la interessante, mas também ter momentos altos dentro daquilo. “Me & Guiliani Down By The Schoolyard”, single de 2003 que passou para Louden Up Now, de 2004, marcou a mudança dos !!! de uma banda banal e até às vezes muito aborrecida para os reis do dance-punk-funk-porno-groove. E continua a ser a melhor canção deles e continua a resistir a todas as mudanças que lhe fazem ao vivo (a versão tocada mudou da de 2005, com um arranjo diferente), sendo também uma das melhores experiências sonoras que alguém pode sentir nesta década. Quando chega a meio, as guitarras descendentes, que remetem para os Sonic Youth, seguida por uma muralha de guitarras e gritos de Nic Offer, há algo de avassalador ali.
Nic Offer limita-se a dizer palavras de ordem e algumas letras, e de vez em quando balbuciar onomatopeias, em termos sonoros, mas é como animador das massas que funciona melhor. Salta, dança, mexe os braços e as pernas, põe o microfone na boca, e tem os melhores movimentos que alguém na sua posição pode ter. Vai ter com o público, põe a cara em frente às câmaras, faz tudo o que pode e não pode fazer. Num ano, os !!! arranjaram roupa melhor (pareciam hippies que viviam numa comuna no ano passado, este ano parecem ter dinheiro) e canções novas. Não que não soem iguais às outras, o que não é necessariamente mau. Mas há algo que também mudou. O percussionista que no ano passado de vez em quando também cantava num falsete muito fraco manteve a barba e passou a estar mais tempo na dianteira do palco. A banda também ganhou mais fãs e passou-se com os fãs mal-educados e encarados de Cramps e Bauhaus.
Talvez o sucessor de Louden Up Now seja o disco que este devia ter sido: mais conciso, mais avassalador, melhor no seu todo e não apenas em dois ou três temas. Até podem manter as mesmas linhas de baixo e as mesmas batidas durante uma hora. Já se viu que funciona em concerto. Precisam urgentemente de um disco enorme para concretizarem o seu enorme potencial. Para já, ficam com dois concertos absolutamente delirantes, com arranjos novos nos temas que são basicamente iguais entre si mas também muito diferentes.



!!! © Luís Bento

The Cramps

Os Cramps são uma banda de rock’n’roll com muitas promiscuidades com filmes de série b e toda uma estética de terror. São lendas vivas, os seus membros têm mais de 50 anos, mas neles não há mais do que sempre a mesma canção, tocada de forma competente e para fazer abanar trintões e quarentões roqueiros com cortes de cabelo feitos para acolher brilhantina.
O “humor” de Lux Interior soa extremamente ridículo, quando fala em usar roupa interior de mulher e diz que Deus odeia os Cramps para justificar a chuva (e quando põe o microfone na boca). È gente que já tem idade para ter juízo, mas insiste em não ter. Em alguns casos, o perpetuar da juventude é bonito e louvável, neste é apenas ridículo e estranho. Riffs no sítio, rock’n’roll básico e versões de quase todas as bandas que soam assim nos Estados Unidos (introduzidas sempre da mesma forma: “Esta é dos *inserir nome de banda*, do *inserir nome de estado norte-americano*”), sempre iguais.
A repetição funciona durante meia-hora, ou pouco mais, sendo o culto à volta dos Cramps completamente injustificável, a julgar por este concerto. Mas têm fãs fiéis e violentos que fazem tudo para estar mais perto da sua banda favorita, empurrando toda a gente que está à frente como se não existisse algo no mundo chamado “boa educação”.

The Cramps © Luís Bento

Bauhaus

A responsabilidade da fundação uma comunidade universal baseada em indumentária assombrosamente pouco original não lhes parece afectar a actividade musical. Os Bauhaus regressaram ao mundo dos vivos e a preto e branco (e os ecrãs gigantes foram mais um instrumento ao serviço do seu espectáculo monumental). “Double Dare” foi o primeiro grande momento, quase a abrir, e a chuva intensifica-se mas a música está mais viva que nunca, voltando a um clímax com “She’s In Parties”. A chuva avança, o temor avança, há direito a uma versão dos Dead Can Dance, “Severance”. Aquele pós-punk distanciado é sempre o mesmo, mas a energia de Peter Murphy parece transformar em algo mais (talvez seja só ilusão, mas eles são grandes ilusionistas). Há uma ameaça de fim e o regresso com “Transmission” dos Joy Division - e a multidão aos pulos já se esqueceu da chuva. Para encerrar o espectáculo os Bauhaus guardam a sua melhor canção, que é curiosamente o seu primeiro single: “Bela Lugosi's Dead". Final de festival grandioso: o tal Lugosi morreu, mas afinal os góticos continuam bem vivos.

Bauhaus © Luís Bento

Entre os concertos

Inexplicavelmente, uma colectânea dos maiores êxitos dos Offspring tocou várias vezes. Também canções de Jack Johnson. Excepções honrosas: um roadie de Morrissey tocou o riff de “Sex Beat” dos Gun Glub antes do concerto e os TV On The Radio passaram após os Yeah Yeah Yeahs.

O Festival Paredes de Coura 2006 benificiou, em contraste com o ano passado, de melhores apoios (melhor cerveja de sempre a preços aceitáveis num festival de verão em Portugal?) e infraestruturas, mas sofreu por uma perda de eclectismo no cartaz - há que dizer que em 2005 houve os Roots, uma banda de hip-hop mainstream, um gesto louvável num festival de rock’n’roll, mesmo que tenha sido uma banda de hip-hop para roquistas (tradução directa do inglês “rockist”) - e pela chuva. Não foi um mau festival, teve muitos pontos fortes - especialmente Broken Social Scene, Morrissey, Gang of Four, Yeah Yeah Yeahs e !!! -, mas também muitos pontos fracos, desde a inanidade inenarrável dos Warren Suicide do palco after-hours à indieferença de bandas como os White Rose Movement, os Madrugada ou os Cat People e de praticamente tudo o resto que se passou no palco afterhours. Talvez seja preciso arriscar mais, variar mais, mantendo os pontos fortes e os maiores chamarizes. Dessa forma, Paredes de Coura tornar-se-á realmente a alternativa que sempre disse ser e, até certo ponto, até é. Fez muito, mas podia fazer mais, e é essa a ideia com que se fica.


Rodrigo Nogueira e Nuno Catarino (Bauhaus)