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Xiu Xiu / The Allstar Project
Teatro Miguel Franco, Leiria
02/06/2006


É por si só aterrorizante projectar a ocasião, mas presume-se que seja humilhante enfrentar uma série de adversidades no momento em que se opta por colocar termo à vida. Morrer entre os escombros de um tecto que desaba à mercê de um corpo excessivamente pesado, quando a intenção inicial seria um bem mais digno sufoco infligido por corda apertada. A generosidade confidencial de Jamie Stewart (o mais assumido dos peões no xadrez Xiu Xiu) renova-se a cada noite em que cede a tornar acto público o esventramento daquele seu esfíngico intimo torturado. Contudo, quis, por capricho, o Teatro Miguel Franco condicionar o sepukku neurótico a Jamie Stewart e à dócil acompanhante Caralee McElroy: acinzentaram a nuvem que sobre a dupla paira anomalias técnicas como um microfone sem contacto, uma corda de guitarra partida que tardou em conhecer afinação e, por arrasto do desconforto, alguns metais atingidos de esguelha pelos presentes em palco. O que provavelmente arruinaria uma insípida e automática noite aos Toranja, estimula a incerteza que no caso dos Xiu Xiu tudo torna mais excitante. Isto porque nem soa a cruel o desejo de testemunhar o colapso a Jamie Stewart. É nessa orla temporária que o próprio se entrega de mais forma mais arrebatadora.

Daí que não contribuísse em muito para um estômago que se quer abalado a amenização que implicou o abrandamento da fase intermédia da prestação. Caralee cantou como se acabada de aterrar num casting para candidatas a integrar uma adaptação televisiva da série de livros da Anita - sussurrante e tão comedida no mediamento de palavras como dois dedos na extracção de pétalas a um malmequer. Depois, armou, entre os gongos e pratos de metal, um estrilho capaz de deixar na expectativa os desejosos de que venha a actuar como projecto noise na secção de cozinha do IKEA. Ao que parece, houve já tempo para uma amostra do próximo The Air Force, de que se espera algumas revelações surpreendentes e uma mais significante presença do talento que tem Caralee.

Antes disso e como mote para a noite em cumplicidade com os Xiu Xiu, o cada vez mais hínico “Bog People” leva a que o rosto de Jamie Stewart assuma uma aparência totémica. Justaposta à sua face esquerda, a autoharpa que arranha violentamente passa a assemelhar-se a uma extensão desse mosaico romântico-gore. A intensidade é a de sempre - aplicada à interrogatória preze de latrina ao cuidado de um núcleo familiar em cacos. Pelo meio, “Crank Heart” é tão efusivamente energético quanto as bebidas que vendem na ilegalidade as festas rave. Perto do fim, “Fabulous Muscles” reafirma o impacto da sua literalidade crua como melhor coveiro para cumprir o obituário da sua assumida disfuncionalidade.

Na verdade, teria valido a pena percorrer a distância até Leiria para reavivar a sensação do que é ter nas mãos um bilhete com arte própria e não um papel uniformizado à imagem de um banal recibo de parqueamento. Melhor só mesmo ver atendido – após breve reflexão telepática entre o par californiano – um pedido que reverteu a meu favor (thank you, dear Caralee) o tempo que restaria a um “encore”: “Sad Pony Guerrilla Girl” mereceu do público a solenidade sepulcral que exige a sua emulação de uma invulgar noção de fragilidade, como se ditasse que o equilíbrio social de uma vila de vícios dependesse de uma criança de 8 anos. Os Xiu Xiu são obrigados a delinear à sua volta - com giz roubado ao bolso de Nick Drake - uma circunferência de contenção para que a circunstância não descambe em material a ser submetido à lacrimal ditadura Goucha. Por uma noite e em jeito de afronta às leias da física, esse pequeno circulo insular comportou sensivelmente 200 pessoas. Passou uma pequena multidão a partilhar da vizinhança onde governa a insolúvel psique dos Xiu Xiu.

Antes disso, haviam descido ao palco uns Allstar Project cujo potencial calibradamente consonante pode vir ainda a amadurecer o colectivo além de um pós-rock capaz de pregar o seu par de valentes cagaços (“Like Herod” dos Mogwai ecoou na acústica do espaço), mas nem por isso suficientemente liberto para que – e isto, até ver - lhe possa ser garantida adjectivação própria. Houve crescendos cinemáticos com manipulação psicadélica de imagens recuperadas a 2001 – Odisseia no Espaço de Kubrick. Trabalho a conferir na bem interessante faixa que integra a compilação comemorativa que a Borland tem vindo a distribuir gratuitamente –on-line e por aí - desde há algum tempo.

Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
02/06/2006