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Anna Calvi
Capitólio, Lisboa
20-/10/2018


Uma hora depois de um DJ set que passou por Aphex Twin, Portishead, Kate Bush e Björk, mesmo à medida de quem foi "alternativo" nos anos 90 (e notou-se, nos rostos envelhecidos de muito do público presente no Capitólio, que essa franja da sociedade estava bem representada), Anna Calvi lá sobe ao palco para apresentar Hunter, o seu novo - e óptimo - álbum, terceiro numa discografia assente no poderio da canção eléctrica, com deferência para com os grandes mestres: Nick Cave e PJ Harvey passam muito por aqui, mas também há algo de único na voz da britânica, que apresenta um registo talvez mais operático que o dos seus pares. Claro que, no fim de contas, foi o rock n' roll e não Montserrat Caballé a salvar-lhe a vida.

Uma vida que a levou a armar-se com uma guitarra, o mesmo estilo com o qual se mostrou perante algumas centenas de pessoas numa sala bem composta, ainda que não esgotada. À metralhadora de seis cordas junta-se uma valorosa atitude blues, a de quem sente não ter algo a provar, mas a dizer; a palavra não precisa do orgulho para nada, basta que se suspenda no ar. Como em "Indies Or Paradise", um dos temas novos: I want us in the air in paradise / I get lost in the air in Paradise, canta, sobre um lugar que provavelmente não existe - o Paraíso - mas que estará ao nosso alcance caso deixemos que a palavra o construa.

Talvez esse Paraíso passe pelas mulheres, mesmo que a dado momento nos pareça que Anna Calvi gostava, no fundo, de ser homem. Ouve-se "As A Man" (If I was a man in all but my body / Oh would I now understand you completely) e, logo a seguir, "I'll Be Your Man" e "Don't Beat The Girl Out Of My Boy", esta gritada em êxtase. Se assim não é, será quiçá o oposto - Anna Calvi diz-nos, na verdade, que não precisa de homens para nada, mostrando-se gozona para com todo o tipo de tretas machistas que postulam que a testosterona é o que diferencia a raça superior das classes mais baixas. E goza com tudo isso enquanto percorre a passadeira para dar electricidade aos seus fiéis, como uma qualquer rock star musculada consciente da sua posição.

Num concerto onde faltou "Chain", a mais bela das canções de Hunter (e que vinha sendo tocada ao longo desta sua digressão), a única crítica mais negativa passará pela ideia de que Calvi se esforça demasiado para que as suas canções soem exactamente como em disco, não existindo qualquer margem de erro ou qualquer centelha que nos indique que estamos perante um ser humano e não um autómato. Claro que nenhum robot conseguiria silenciar o público da mesma forma que ela o fez, durante "No More Words", só a sua voz se erguendo sobre o sepulcro. Nem seria capaz de nos lembrar que o nosso fascínio por Anna Calvi não é de agora, quando "Suzanne & I" é imediatamente sucedida por "Desire". No final, uma versão de "Ghost Rider", dos Suicide, põe termo a um concerto onde valeu, sobretudo, a existência daquelas canções - mesmo que ainda não se tenham bem elevado para lá da sua intérprete. Para lá caminharemos.

Paulo Cecílio
pauloandrececilio@gmail.com
20/11/2018