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Mercury Rev
Lux, Lisboa
27-/9/2018


No princípio era Deserter's Songs. Bem, não era bem no princípio; Deserter's Songs é, no fim de contas, o quarto álbum de estúdio dos Mercury Rev (sem contar com Paralyzed Mind Of The Archangel Void, disco assinado como Harmony Rockets). Mas quase que este podia ser de facto o princípio dos Mercury Rev, já que foi este disco que os catapultou para a fama indie, nos idos anos de 1998. Parece que foi há muito tempo. E parece-o, sobretudo, para a esmagadora maioria dos fãs presentes esta noite no Lux, quase todos eles com idades superiores a 35 anos.

É, de facto, uma banda para velhos - não há aquela energia feérica da juventude, não há caralhadas a torto e a direito, não há uma vaga de desdém a emanar do palco porque a vida são dois dias e odeio-vos a todos. Há uma música bonita, melancólica, extremamente cuidada. Há uma linguagem de paz e paz interior, humor refinado e com cheiro a café quente, o gosto pela folha caída de outono por oposição à tristeza pelo fim do verão. Há uma banda que depois de ter marcado aspirantes a poetas reencontra agora esses mesmos poetas para lhes dar um abraço.

Poetas que poderiam ter escrito algo como Farewell golden sound, no one wants to hear you now / And of all the happy ends, I wouldn't wish this on a friend / But you're the only one I know, versos retirados a "The Funny Bird", a canção com a qual os Mercury Rev começam o concerto. E que poderiam ter aberto os braços exactamente como Jonathan Donahue o fez ao pronunciar a palavra friends. É que este era, de facto, um concerto para amigos; primeiro porque esta celebração de Deserter's Songs tem sido feita sobretudo em salas mais pequenas e aconchegantes, segundo porque só quem apanhou com toda a carga emocional do disco em 1998 poderia compreender o quão especial é estar, aqui e agora, a ouvi-lo novamente.

Um "novamente" com algumas reservas; estes arranjos que aqui se escutaram não são exactamente os mesmos que encontramos no álbum. A pequenez da sala obriga ao formato acústico, que, explicou Donahue, é aquele que está mais próximo do formato original, conferindo desde logo um maior grau de intimidade à coisa; estamos perante os pensamentos originais de uma banda que não sabia o que era o "sucesso" até lançar Deserter's Songs. E, como uma cereja no topo do bolo, perante também a enorme afabilidade do vocalista e guitarrista: «Já passaram vinte anos, mas vocês estão com um óptimo aspecto»...

Do leque de «canções frágeis, que se podem partir a qualquer momento» sobressaiu "Tonite It Shows", a instrumental - e coadjuvada por um serrote - "I Collect Coins", "Delta Sun Bottleneck Stomp" e, ainda, "Here", versão dos Pavement que foi recebida com enormes aplausos. Para não falar de "Holes", porque é quase obrigatório falar dela e queríamos fugir um bocado a isso. Se Donahue "culpou" o "fracasso" da banda nos anos 90 a «uma nuvem negra com néons vermelhos chamada britpop», aquilo a que o público assistiu foi a uma nuvem tão branca como a lua e tão delicada como uma teia de aranha, piscando de feedback sempre que a ocasião a isso obrigava. A noite era de festa. E foi bonita a festa, pá.

Paulo Cecílio
pauloandrececilio@gmail.com
02/10/2018