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EDP Cool Jazz - David Byrne
Hipódromo Manuel Possolo, Cascais
11-/07/2018


Atrás dos tempos vêm tempos e outros tempos hão-de vir. Já assim cantava Fausto e assim fez David Byrne, que não se ficou pelo passado, não se deixou ficar preso à extraordinária banda da qual foi o rosto, seguiu em frente e continuou a criar. Para lá da enorme bagagem dos Talking Heads, há um percurso em nome próprio que acaba de apresentar mais um capítulo, “American Utopia”. Já se passaram várias décadas da edição do fantasmagórico “My Life in the Bush of Ghosts” (foi em 1981, sim), mas Byrne volta a encontrar Brian Eno e o resultado é estranhamente interessante.

O palco foi montado num hipódromo e foi Byrne quem abriu o chamado EDP Cool Jazz (nem vamos entrar por aí, já nem vamos à procura do jazz, essa conversa fica para outra altura…). O público encheu o recinto, ouviu-se falar em oito mil pessoas, sendo sobretudo constituído por pessoas de meia-idade. Muitos foram motivados pela música (sobretudo, e naturalmente, a evocação dos Heads), e também pelo saudosismo, pela ideia de voltar à juventude assistindo à actuação de um cantor pop-rock de 66 anos. O concerto abriu com “Here”, tema que fecha o disco recente (co-produzida por Daniel Lopatin AKA Oneohtrix Point Never), mostrando desde logo a enorme aposta na encenação: Byrne ao centro do palco, apontado num cérebro de plástico para diferentes zonas (“Here is many sounds / for your brain to comprehend / here the sound is organised / into things that make some sense”). O mote estava dado, Byrne e a banda iam enviando sons, os nossos cérebros ia tentar processá-los.

Sem se colar demasiado ao passado nem forçar o presente, o ciclo-activista sexagenário apresentou um repertório composto por temas recentes e canções clássicas, sem vergonha de se atirar às boas memórias dos Talking Heads. Ao segundo tema chegou o primeiro grande momento pop, com a repescagem de “Lazy”, tema dos X-Press 2 ao qual Byrne emprestou a voz (e ficou com o tema). E ao terceiro tema já estávamos a dançar os Talking Heads: maravilhosa “I Zimbra”, onde se canta um poema dadaísta (de Hugo Ball).

Um dos grandes momentos da noite chegou com a interpretação de “Everybody's coming to my house”, uma das canções do novo disco que mais se destacam. Byrne também não esqueceu a celebrada parceria com St. Vicent, tocando “I should watch TV”. A meio do concerto chegou a sequência que pagou definitivamente o bilhete: “This must be the place (naive melody)” e “Once in a lifetime”. Como chegámos aqui? Não deixa de ser estranho uma banda como os Talking Heads tenha tido este sucesso popular, trabalhando uma música pop que se serve de elementos experimentais e sempre procurou soluções pouco óbvias. Mas aqui estamos, trinta e quatro anos depois da primeira gravação desta música, e continuamos a cantá-la com a mesma frescura de sempre (“same as it ever was”, como cantou).

A actuação, além da vertente musical, incluía uma forte componente cénica. Além de interpretarem os temas em tempo real (“não há playback”, disse Byrne), o grupo de músicos (mais de uma dezena) entrava num permanente jogo de dança, tudo coreografado ao milímetro, num espectáculo completo. O grupo atacou o repertório versátil com uma interpretação instrumental impecável, onde o movimento da dança não atrapalhava. Já a voz de David Byrne, continua perfeita, mesmo nos temas mais exigentes. Pelo meio não faltou um apelo à participação cívica (votem!), e mais para o fim mandou a casa abaixo quando chegou “Burning down the house”.

Após uma despedida oficial, Byrne regressou para dois encores e fechou de vez com uma revisão de Janelle Monáe, “Hell You Talmbout” - não é canção qualquer, são cantados nomes de negros mortos pela polícia dos Estados Unidos (à canção original de Monáe foram acrescentados mais nomes de vítimas mais recentes). Faltaram óbvias (como “Psycho-killer” ou “Road no Nowhere”), mas não nos podemos queixar, a dose de Heads foi generosa. E o concerto valeu pela qualidade global da performance, bem mais do que simples interpretação de música ao vivo. Já não seria mau, mas com toda a máquina a rolar Byrne apresentou um espectáculo fantástico.

Antes de Byrne actuaram Sara Tavares (que mostrou as "coisas bunitas" do recente disco "Fitxado", na primeira parte) e a jovem trompetista Jessica Pina (que serviu de entretenimento para a zona de restauração "Cool Pick & Go").

Nuno Catarino
nunocatarino@gmail.com
24/07/2018