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LCD Soundystem
Coliseu dos Recreios, Lisboa
21-/06/2018


Como é que se fala duma noite de paixão? Como é possível descrever a alegria, a excitação, a euforia de consumar numa noite todo o amor que sentimos a arder durante anos a fio nos nossos corações? Como é possível descrever um orgasmo sem recorrer aos bons velhos lugares comuns e sem falar de tremores, de pernas bambas, de arrepios, de suores frios e da momentânea libertação do corpo de todas as amarras com que o cérebro e a decência o prendem durante o resto do tempo? Como é que se fala sequer da beleza do sexo da reconciliação, ou até mesmo de fazer amor com alguém que, apesar de nos ter magoado tanto e de forma tão profunda, ainda continua a ser dono e senhor dos nossos corações? Em suma, como é que se fala do concerto que os LCD Soundsystem deram no Coliseu no ano da graça de 2018?

Posto isto, nem vamos perder muito tempo a falar do desgosto que sentimos com o fim da banda, da hipocrisia do espectáculo de despedida (da qual só nos apercebemos a posteriori, porque os traídos são sempre os últimos a saber) e da raiva que tomou conta de nós quando soubemos da reunião, pois se há coisa que a vida e a bela arte do kintsugi nos ensinaram é que os nossos frágeis corações, mesmo depois de quebrados em milhares de pecinhas pequeninas, podem sempre ser colados e consertados para ficarem mais fortes, mais belos e mais capazes de amar; e american dream, disco que o grupo veio apresentar a Lisboa, foi sem dúvida a cola de ouro perfeita para a nossa reconciliação com Murphy.

As memórias ainda estão um pouco difusas, mas temos a certeza de que chegámos ao Coliseu no início do set de abertura de Shit Robot, que durante uma hora atirou para cima dos presentes o belo do technão, recebendo da plateia respostas que com o passar do tempo se foram tornando cada vez menos educadas (e até nós, apreciadores de um bom bater do pé, temos de admitir que percebemos os apupos vindos de quem não foi ali para ver uma versão indoor do que se serve numa sessão do Brunch Electronik). Também temos a certeza de que admirámos, ainda que sem espanto, a enorme bola de espelhos (retirada directamente da capa do homónimo de estreia de 2005) que adornava o topo do palco, numa reafirmação de que, durante três noites, a mais respeitável sala de espectáculo do país não seria mais do que uma pista de dança. E temos a certeza de que uma bela suave transição fez com que a última peça do set do DJ irlandês desse lugar àquela linha de sintetizador que James Murphy, melómano como poucos, roubou à “The Robots” dos Kraftwerk para servir de esqueleto a “Get Innocuous!”. E a partir daí, como se de um sonho se tratasse, já não temos a certeza de nada.

Não temos a certeza mas, paradoxalmente, sabemos do fundo do coração tudo aquilo que se passou, nem tanto porque a setlist prontamente disponibilizada por alguém aqui nos ajuda a montar as peças do puzzle (até porque o reboliço da noite tornou qualquer tentativa de tirar notas não só impossível como até mesmo indesejada), mas sobretudo porque os flashes que ainda nos vão surgindo não nos deixam mentir sobre o que se passou naquela noite. Não que fosse necessário manipular a verdade com palavras bonitas para engrandecer o espectáculo que os LCD Soundsystem deram; aliás, se há coisa de que nos apercebemos ao escrever este texto é de que as palavras, por mais belas que sejam, acabam por ser estupidamente incapazes de descrever tudo o que sentimos naquele concerto.

Mas tentemos ainda assim fazer jus à noite, nem que seja para “gravar na pedra” todos os detalhes dignos de nota. Como é o caso da disposição dos equipamentos em palco, descarnada e crua, sem quaisquer ilusões ou truques de cosmética, fazendo lembrar o esqueleto duma mesa de mistura dividida pela soma das suas componentes e sobre a qual James Murphy, disc jockey de excelência, exerce um controlo absoluto; ou da apresentação cénica, assente num espectáculo de luzes do início ao fim fenomenal, que tanto pendeu para o lado mais estroboscópico, repleto de feixes coloridos dignos das melhores discotecas, como para o mais minimalista, com o realce das silhuetas que povoavam o palco do Coliseu a cobrir os momentos mais íntimos da noite com um manto de misticismo e liturgia; ou dos talentos de Murphy para “matar tempo” nos raros momentos em que os instrumentos se calaram e as canções não se sucederam umas às outras costas com costas ou com transições suaves como seda, com conversas tão díspares quanto a relação de amor-ódio pela doçaria nacional, dados estatísticos que apontam Lisboa como a cidade do mundo com mais fãs de LCD Soundsystem per capita ou o facto de o encore, esse cliché por excelência do mundo rock, se ter tornado para estes envelhecidos artistas numa desculpa para ir à casa-de-banho; ou ainda, e acima de tudo o resto, as canções que todos sabiam de cor, as canções que foram parte fundamental das bandas sonoras da vida de todos os presentes na plateia, as canções que justificaram em absoluto as três noites praticamente lotadas no Coliseu.

Canções como “You Wanted a Hit”, tocada costas com costas com o tema que abriu as hostilidades da noite, e cujo cinismo caiu com estrondo no chão do recinto, desarmando-nos por completo e fazendo-nos esquecer toda e qualquer acusação de vendido que ainda pudéssemos ter vontade de atirar a Murphy (ou não fossem os versos You wanted it real / But can you tell me what’s real? / There’s lights and sounds ands stories / Music’s just a part um dedo em riste, apontado a nós e aos nossos míseros idealismos); “Tribulations”, que nos trouxe o primeiro grande coro da noite e o primeiro grande momento em que nos apercebemos que ali dentro estávamos todos no mesmo comprimento de onda, dispostos a celebrar o futuro, o presente e o passado daquela banda; “I Can Change”, cujo início, marcado em iguais partes pela inocente interpolação de “Radioactivity” dos sempiternos Kraftwerk e pelos caprichos de um sintetizador modular prontamente detectados e resolvidos pelo maestro da companhia, nada fez para suavizar nem para manchar a dureza dos chicotes electrónicos que servem de corpo à peça.

Canções como “Call the Police”, primeira de quatro incursões pelo mais recente registo dos norte-americanos (com “Tonite”, “How Do You Sleep?” e, já no encore, “Oh Baby” a completar o quarteto) e o momento em que nos apercebemos do quão perfeitamente as composições de american dream se inserem no cânone dos nova-iorquinos; “Daft Punk is Playing at My House”, o momento em que nos apercebemos que o Coliseu era, àquela hora, a nossa casa e, porra!, os LCD Soundsystem estavam a tocar nela; “Someone Great”, surgida das ruínas do final de “Movement”, numa mimese perfeita da forma como Murphy criou a partir da morte do seu psicólogo, confidente e amigo uma das melhores canções de luto e celebração da vida de que há memória; “I Want Your Love”, cover de Chic que nos permitiu atestar o vozeirão de Nancy Whang em todo o seu esplendor e concedeu ao frontman um raro momento longe dos holofotes.

Ou canções como “Dance Yrself Clean”, banda sonora mais que apropriada para um encore onde todos (e aqui olhámos à nossa volta, para os balcões e para os camarotes e pudemos perceber que eram mesmo todos) dançámos como se a nossa inocência, a nossa integridade e, no fundo, a nossa vida dependesse disso; e, no final de tudo, “All My Friends”, esse carrossel de emoções conduzido pela melhor linha de piano de toda a história das linhas de piano, esse rio musical que nasce plácido e simples para desembocar no clímax mais catártico das nossas vidas, esse aglomerado perfeito de notas e ritmos e letras, esse hino à noite, à vida e à amizade, cantado a plenos pulmões pelos milhares de iluminados que se viram enfiados no Coliseu naquela noite quente de Junho e que foram recompensados com fugazes epifanias sobre o sentido da vida, do mundo e do universo.

Por esta altura já todos devem ter percebido que, mais do que uma reportagem de um concerto imbuída de qualquer tipo de profissionalismo, este texto não é mais do que uma ridícula carta de amor aos LCD Soundsystem, a James Murphy e a uma noite em todos os aspectos soberba. E é por ser uma carta de amor ridícula que me vejo obrigado a roubar as palavras que o Paulo usou aqui em 2012 para falar de um dos seus concertos favoritos: falar destas sensações é tentar encontrar palavras que expliquem o amor como uma equação. É impossível. Só quem lá esteve poderá compreender.

No fundo, isto somos nós a tentar fazer sentido duma noite de paixão, onde vimos ao vivo a “All My Friends” e a “Someone Great” (que é a canção que irá tocar nos nossos funerais) e cumprimos o sonho de adolescente de as cantar em uníssono com os nossos semelhantes. A tentar fazer sentido duma noite onde vimos a nossa banda: a banda que nos mostrou que era possível ser um puto do rock e dançar; que nos provou que o choro também traz alegria e que alegria também se chora dançando e se dança chorando; que nos trouxe “Losing My Edge” (que nem sequer tocaram nas duas primeiras noites, os filhos da puta), cábula que levou dezenas, centenas, milhares de jovens imberbes a descarregar discografias inteiras de todas as bandas mencionadas na letra e abriu portas ao conhecimento melómano de muitos; que nos trouxe os hits (e as faixas que, não se assumindo como hits, são-no); que nos trouxe as canções que tanto servem para o puto seboso que passa horas na Wikipedia e no AllMusic a ler sobre as bandas que já só vivem numa Nova Iorque, numa Londres, numa Berlim imaginárias como para os “comuns mortais” que os descobriram graças à banda sonora dum qualquer videojogo (e não há mal nenhum nisso); que mostrou que é possível juntar Kraftwerk e The Velvet Underground, Television e Daft Punk, guitarras e technão, que os New Order não foram um mero erro de percurso (mas sim uma etapa fundamental, tanto para o rock como para a música electrónica) e que, no final de contas, o Bowie e os Talking Heads, com o seu amor pelo experimentalismo electrónico e pela disco, é que a sabiam toda; que ensinou aos miúdos borbulhentos e meio misantropos que estavam habituados a ficar em casa à noite a chorar e a ouvir Joy Division que era na boa irem com as suas t-shirts do Unknown Pleasures para as pistas de dança suar os desgostos, as depressões e as crises existenciais; que fez com que muitos putos comprassem sintetizadores, mesas de mistura e/ou guitarras e amplificadores, ou no caso daqueles que nunca tiveram o talento nem o alento para o cultivar, se metessem nesta má vida de escrever sobre música na esperança vã de mostrar aos outros as belezas que esta arte encerra e o quão apaixonantes podem ser as bandas, os artistas, as canções e os discos que fazem os nossos corações bater mais depressa.

Se provas faltassem do quão profunda, quão marcante e quão necessária foi esta experiência para nós, aqui fica uma última confissão: à hora em que o primeiro rascunho deste texto foi acabado, a pessoa que escreveu estas letras tinha acabado de vir de um concerto de Animal Collective que, apesar de excepcional, pouco fez para apagar os desejos de estar, à mesma hora, na terceira noite com que os LCD Soundsystem abençoaram o público com a sua presença. Desejos esses que arderam intensamente nos nossos corações, apesar de estarmos fartos de saber, através do mito, que um relâmpago não cai duas vezes no mesmo lugar (quanto mais três), apesar de sabermos que ao fim de três noites a voz de Murphy haveria de quebrar, apesar de sabermos que a qualidade de som algo questionável da primeira noite dificilmente estaria melhor naquela altura, em suma, apesar de toda e qualquer razão lógica. Mas o que é a lógica depois de termos estado na presença da grandeza e termos sentido algo maior que nós?

João Morais
joao.mvds.morais@outlook.com
28/06/2018