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Lisboa Electrónica
LX Factory
4-7/04/2018


No princípio era Juan Atkins, Kevin Saunderson e Derrick May, a ouvir discos de Kraftwerk no conforto dos seus quartos em Detroit, e a produzir uma música então inclassificável e futurista nos estúdios, a rodá-la nas discotecas, a levá-la às rádios. Era o techno, palavra que significava mais que uma mera redução de "tecnologia"; era a fusão da máquina com o ser humano, a simbiose perfeita entre sangue e petróleo, uma música de dança feita por e para robôs que se apresentava sobretudo revolucionária, saída dos subúrbios de uma cidade industrializada para captar as atenções de milhares de alienados por esse mundo fora - à semelhança de tantos outros géneros musicais antes de si.

E, tal como estes, o techno massificou-se, abriu as portas e abriram-lhe as portas. Hoje a revolução vai distante, e a guerra que existia outrora entre os fãs de techno - ou de qualquer tipo de música electrónica - e a malta das guitarras também parece estar progressivamente a esfumar-se. O techno já não é uma música do subúrbio mas sim das grandes cidades, já não é a música de um trio afro-americano mas sim a do grande capital, a das marcas que se dizem "alternativas" - Red Bull, Somersby e quejandos -, a das passagens de modelos e luxos da moda, a dos junkies de classe média alimentados a MD. O que se ganhou em multidão, perdeu-se em espírito.

Algum desse espírito parece ainda existir nos grandes eventos que de semana a semana se vão realizando em cidades como esta mesma Lisboa, em espaços como este mesmo Ministerium, pela mão de pessoas como este mesmo Audiopath que, na companhia de Jerry the Cat, tocou para uma meia dúzia de pessoas - incluindo as duas que assinam esta reportagem/desabafo -, já depois de uma série de talks patrocinadas por uma bebida energética terem levado nomes como Carlos Maria Trindade e Rui Vargas ao Capitólio. Compreende-se: ainda era demasiado cedo para que muitos dos fãs de techno ou de qualquer música electrónica de dança estivessem presentes no local, porque tal como só se sai à rua de cravo na mão a horas certas só se dança ao som de um beat 4/4 a partir das 3h e até depois do sol raiar.

O segundo palco, no segundo piso do Ministerium, onde se realizou a primeira leva de DJ sets e live acts, não se encontrava muito melhor. Pelo que a ideia a tomar, e possivelmente a mais indicada, foi a de ir picando aqui e ali, sem medos, aproveitando o ar condicionado que só soprava no quarto degrau das escadas que dão para a casa-de-banho e os sofás estrategicamente posicionados para amparar os festivaleiros. Saltita-se de ritmo em ritmo até se encontrar aquele que melhor se conjuga com o nosso próprio batimento cardíaco.

Esse ritmo pareceu vir por breves instantes pela mão de Robert Drewek e DJ AL, num b2b que deixou satisfeitos os que já se iam aglomerando no Ministerium a partir da meia-noite, hora em que se sente o fígado a explodir. O techno durinho com o qual começaram já foi aceitável, mas o melhor momento foi mesmo a aposta no house mágico de "French Kiss", clássico de Lil Louis onde o orgasmo é um instrumento musical e que colocou, de facto, um casal aos beijos. Duas horas e meia depois, o grande "prato" do dia: Actress, regressado à capital para apresentar os temas (e o espectáculo visual à sua volta) de AZD, álbum editado em 2017.

Num registo mais chill daquele a que os presentes estariam porventura habituados, que obrigava a uma atenção reforçada - pois esta não é bem uma música que se dança, mas sim que se pensa - Actress trouxe ao cérebro imagens de edifícios urbanos com um coração a bater entre o betão, em decomposição lenta, fábricas ecoando memórias antigas e alucinatórias, melodias binárias escondidas dentro de um só homem com um capuz, cigarro na boca, envolto numa névoa rítmica. Porque Deus odeia a música, apesar de a música ser Deus, o pessoal, à semelhança daquilo que acontece em muitos outros festivais, maiores e mais pequenos, não foi capaz de manter a goela trancada. Jack White devia preocupar-se mais com gargantas e menos com telemóveis.

O segundo dia de Lisboa Electrónica, que se mudou então do Ministerium para o LX Factory, contou com a presença incómoda da chuva, que obrigou à extinção do palco exterior; quem quisesse ouvir, teria de o fazer na sala principal. Ainda eram pouquíssimos os que, naturalmente, se encontravam lá dentro às três da tarde, o que não quer dizer que os primeiros showcases não tenham sido agradáveis - mesmo que inconsequentes: se uma árvore passa techno no meio de uma floresta e não está lá ninguém para dançar, será que o passou realmente?

Durante quinze horas consecutivas, mais coisa menos coisa, foi este o ruído que se foi escutando durante todo o evento. O que nos leva a outra ideia: festivais como o Lisboa Electrónica precisam, urgentemente, de uma sala específica para o chill out onde a cóclea possa descansar, amenizar a fadiga acumulada de tantas e tantas horas de batida, trocar uma ou outra ideia sem que o puntz puntz se revele mais incomodativo que especial - particularmente para quem não tomou qualquer tipo de drogas, mesmo que entre salas haja quem vá oferecendo MD em troca de um cigarro.

O MB Way demora horas a carregar até que alguém finalmente nos explica que teremos de activar a pulseira não sei onde, pulseira essa que deve ser a pior invenção de sempre em festivais de música a seguir à noção de que um festival de música serve para tudo, menos para ouvir música. A sede foi a única coisa que nos restou até que um house, um techno ou algo híbrido nos fez esquecer todos esses problemas. Problema só mesmo a arrogância de Nina Kraviz, que horas antes havia feito circular uma nota em que dizia que todas as fotografias que os repórteres presentes no local lhe tirassem teriam que ser pré-aprovadas. Como Nina Kraviz não é Beyoncé e nós não nos vergamos perante egotistas, mandámo-la foder e fomos arranjar energias para o terceiro dia.

Música electrónica é show, diz-nos o simpático condutor que nos levou até ao LX Factory em sábado nublado, já depois de nos explicar as diferenças entre a Uber e a Taxify e porque é que ganha mais dinheiro com um do que com outro, e porque é que num recolhe mais estrangeiros do que no outro, e esse género de dinâmicas. Há uma banda a tocar um funk mais meloso perante uma multidão quieta e comilona cá fora, e as paredes do edifício onde se realizou o festival tremem todas com os primeiros showcases. Fumiya Tanaka foi o primeiro grande nome desta última etapa de Lisboa Electrónica, com um set onde imperou - claro - o techno, e onde existiu quem aproveitasse a ocasião para celebrar ali mesmo o seu aniversário, com direito a bolo escondido atrás do balcão das bebidas e tudo.

Se Oscar Mulero mandou a casa abaixo com um set coerente, Stellar Om Source e Legowelt não conseguiram igualar as expectativas criadas em quem pensa na sua música como algo mais que gasolina para pastilhados - pelo que o melhor foi, uma vez mais, ir percorrendo as salas já num estado notável de embriaguez, à espera que um ritmo, qualquer ritmo, voltasse novamente a salvar uma noite que parecia perdida, não obstante as conversas sobre bola com gentes singulares do Porto e os pedidos de paguem shots de açorianas mais para lá que para cá. O techno pode já não fazer revoluções, mas é bem capaz de cimentar amizades. Valha-lhe isso. Também é por isso que se ouve música.

Paulo Cecílio
pauloandrececilio@gmail.com
30/04/2018