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EDP Vilar de Mouros 2017
Vilar de Mouros, Viana do Castelo
24-26/08/2017


Não há dezenas de milhar de pessoas a fazer fila para entrar, mas nota-se o reboliço no trânsito e o alvoroço entre os presentes no recinto, alguns dos quais - presume-se - não se viam há largos anos. Não há alcatrão nem relva sintética nem sequer um "anfiteatro natural", mas há, se não tivermos cuidado, uma bosta de vaca seca a adornar o caminho e a sola do sapato. Não há flores em cabelos alheios nem colares de missangas ou livros do Aldous Huxley, mas não conseguimos senão sentir que isto é uma espécie de Woodstock, um Woodstock que em vez de ter parado no tempo evoluiu até aos dias de hoje apenas e só para celebrar o seu próprio passado.

É isto Vilar de Mouros, um lembrete de que antigamente é que era, de que hoje em dia a canalha já não sabe como se divertir. O ensinamento parte dos tipos de calções e t-shirts rockeiras, embriagados ou algo mais, dançando em frente ao palco sem chatear absolutamente ninguém com moshing ou crowdsurfing idiota. E é por isso que quando se diz que Woodstock ou Vilar de Mouros está a celebrar o passado, na verdade é um elogio.

Não, não há pancadaria na poeira, drogas sintéticas a aparvalhar betalhada de Cascais ou gente que veio só para aparecer nos ecrãs gigantes que ladeiam o palco. Há música. Há a música sobretudo do dia de ontem, quando estes que aqui estão eram jovens, inconscientes do futuro que viriam a ter. Mas gabemos-lhes a falta de vergonha e elogiemos-lhes os gostos musicais porque, afinal de contas, o que aqui está hoje em palco influenciou todo um presente.

Não é o caso dos The Veils, que influenciaram anúncios da Optimus/NOS, uma operadora com uma cobertura assustadoramente má em todas as freguesias minhotas pelas quais se passou, sem sequer terem tocado essa ("The Leavers Dance"). Listen up, 'cause here they come, afirma Finn Andrews, líder da banda e filho de Barry Andrews, que nos anos 80 fundou os magníficos XTC. Fala-nos dos mortos. A canção é Alan Vega-lite, com vocais idênticos, agonizantes.

A música dos Veils é um pop/rock quase metálico, que sabe enfurecer-se quando assim tem que ser. O público acena à bonita baixista, que retribui sorridente. O tempo, esse, foi demasiado curto: 40 minutos para aquele que foi um dos concertos do festival. Ainda houve uma proposta ao Sr. Ovídio De Sousa Vieira, director do limiano Diogo Bernardes e que gentilmente safou boleia a este escriba, que os levasse futuramente até àquele teatro, mas só localizámos Finn horas mais tarde para tentar fazer com que acontecesse. Talvez fique para uma próxima.

Porque o mundo é feito de "próximas". Ainda não foi cumprida a promessa de há dois anos, feita ao magistral Cristiano Pereira (JN), de vir a escutar os discos de Sérgio Godinho. Fica para a próxima. O TRC ZigurFest ofereceu casa e comida para que se conhecesse Lamego este ano. Fica para a próxima. Os Young Gods já fizeram parte desse mundo, anos e anos que se esteve sem os picar. Aconteceu naquela tarde-noite de Agosto e, surpresa das surpresas, suspiro contido incrédulo, foi incrível. O ambiente assumidamente negro encontrava eco nos cornos do Grande Bode estampado sob logótipo de Bathory. Nalguns dos góticos presentes no recinto, também.

Num português prenhe de sotaque, Franz Treichler saúda o público. Faz tempo..., diz-nos, sabendo ele que os Young Gods possuem um culto gigante por cá. Certo, siga: arrancam para uma agressividade eminentemente industrial, fode-ouvidos glorioso que tem irmãos nos Swans e filhos directos nos Nine Inch Nails. Uma cruz luminosa vai pairando sobre o palco, como que abençoando todo o ritual. Uma batida urbano-tribal faz dançar. O francês das letras é imperceptível, mas aí a culpa já é própria. Assim como o é de se ter ficado tanto tempo sem os conhecer. Mais não resta que pedir perdão.

Nas laterais, havia quem fizesse fila por um saco da EDP, ou quem ostentasse orgulhosamente um chapéuzinho de palha seca, preto ou bege, era indiferente. A bifana com queijo saciou alguma da fome, e a menina do tabaco tentou impingir qualquer coisa que acendia cigarros e não soltava fumo. Acho que já o vi noutro festival, diz ela. Correcção: já me viu em vários. Continuou sem conseguir vender o seu peixe. Como é que era? Fica para a próxima.

Sobem ao palco os The Mission, quiçá a banda mais aguardada do cardápio de hoje, pelo menos a julgar pela quantidade de t-shirts da banda que por ali se viu. No final ficou a sensação de que Andrew Eldritch é que sabia e que os Sisters Of Mercy continuam a ser infinitamente mais relevantes do que um único acorde dos seus clones. Mal tinham partido pelo gótico fora quando surge uma das canções mais bonitas da história da humanidade, "Like A Hurricane", do Tio Neil, numa versão amanhada pela metade. "Severina", essa, soou bem depois de tantos anos a ocupar espaço na infância, provinda de rádios e/ou programas de televisão entretanto esquecidos. Mas, melhores que os Mission, era mesmo a garrafa de vinho que iam tragando em cima do palco.

O vinho, como se sabe, melhora com a idade. O mesmo se poderia dizer dos Jesus And Mary Chain, que podiam ter acabado como um par de Gallaghers, fruto para dúzias de notícias absurdas do NME, mas que decidiram - e bem - continuar a ser das melhores bandas deste universo e do próximo, quanto mais não fosse porque Psychocandy é trinta anos depois um sonho extraordinário. Desta feita, o mote foi Damage And Joy, álbum editado este ano.

Como é evidente, ninguém ligou muito às canções de Damage And Joy, nem quando Bernadette Denning, a namorada do Reid com primeiro nome William, entra por ali fora para cantar "Always Sad", sendo que no disco é também a sua voz que agracia o tema em questão. Houve uma escolha consciente da parte da audiência em concentrar esforços na magia de "April Skies", na recuperada "I Hate Rock N' Roll" ou na tríade de gozo com a qual os Jesus And Mary Chain decidiram encerrar o concerto, já com Bobby Gillespie na bateria, para matar saudades de um passado já distante (e para fazer história no que a festivais de verão em Portugal 2017, e quiçá no mundo 2017, diz respeito): "Just Like Honey" (claro), "The Living End" (uau) e "Never Understand" (com um dos três membros de uma imprensa pouco especializada a rugir de emoção junto ao palco, nos bastidores. Este mesmo que assina este texto e que de lá não saiu sem obter uma cobiçada setlist).

Gillespie poderia ter tido uma carreira como baterista, mas escolheu formar os Primal Scream e parir um dos grandes discos da década de 90 e do rock electrónico e ácido: Screamadelica. O mesmo que se faz ouvir com "Movin' On Up", logo no arranque. Um falso arranque, já que um problema no som levou Gillespie e sua banda a recomeçar. I thought it would be warmer..., chutou ele, sem se lembrar de que estava a tocar praticamente nas highlands portuguesas.

"Movin' On Up" lá soou como ele queria, e como os presentes queriam, e depois houve "Slip Inside This House", original dos 13th Floor Elevators que aqui soa ainda mais grandiosa. O tempo era curto, demasiado curto, e por isso os Primal Scream optaram por uma espécie de best of; o eco de "Swastika Eyes" há-de ter-se ouvido em Espanha, "Loaded" ergueu-nos a todos pelos braços rumo ao céu, "Rocks" atirou-nos violentamente contra a terra por força dos riffs e "Come Together", hóstia com sabor a LSD, embalou-nos naquela toada teológica que poucas canções têm - e muitas menos de artistas que não Jason Pierce. Foi morno. Mas deu para os gastos.O festival de Vilar de Mouros, ou pelo menos na sua encarnação actual, nunca poderia levar muita gente a aventurar-se pelo Minho fora. Claro que fazem mal: o Minho é belíssimo, mesmo quando é o negro pós-incêndios a colori-lo. As montanhas surgem ao longe como miragens, a gastronomia aquece corpo e alma. A simpatia está expressa nos rostos de todas as pessoas e talvez seja daí que venha o estereótipo adaptado a Portugal.

Mas nem a beleza do Minho salvou Vilar de Mouros, que não tem feito cartazes para a juventude. É para os que já não o são, ou para os que teimam em sê-lo em espírito. Salvador Sobral não arrasta miúdos; arrasta quem o viu na final da Eurovisão, e mesmo esses não são muitos. Ou, pelo menos, não foram até Vilar de Mouros para o ver cantar brasileiradas (expressão dele), ópera, jazz ou a intragável "Amar Pelos Dois". Sim, o adjectivo é mesmo esse. Como é que uma garganta como a de Salvador Sobral se pôde prestar a tamanho lixo?

Fora essa pedra no sapato, aquilo a que se assistiu no festival foi um concerto de uma anti-diva que guarda mais do que aquilo que mostra realmente. Coadjuvado por uma banda exímia - Júlio Resende, evidentemente, mas também o óptimo contrabaixista André Rosinha e um baterista cujo nome há-de estar no Google -, Salvador Sobral foi-se escondendo do palco, deixando que os "seus" músicos obtivessem um pouco da "sua" spotlight, enquanto canções mais ou menos conhecidas iam sendo debitadas ao longo daquela hora. Eu acho que foi um erro de casting , mas estou muito feliz por estar aqui..., diz a dada altura.

Não foi de todo um erro de casting, mas é verdade que Salvador Sobral merecia duas coisas em Vilar de Mouros: um público maior e um público que se estivesse nas tintas para "Amar Pelos Dois", de forma a que todos os seus dotes como cantor pudessem ser apreciados com a dignidade que merecem, longe do hype que o tem tragado com a sua bocarra. Em espanhol ou em inglês ou em português, o puto até poderá ir longe. Basta arrancar essa mancha do currículo.

Currículo irreconhecível em George Ezra, que parece que tem uma canção qualquer a passar numas rádios quaisquer, e que se estreou em Portugal para entoar canções sobre escape, do amor ou da vida, tanto faz. Entre músicas, é capaz de enveredar pelo country rock, pelo ska ou até mesmo pela folk mais eléctrica. Mesmo com esse ecletismo todo, o seu som é espantosamente inconsequente, e nem uma declaração de amor a Barcelona numa semana pós-atentados o salvou. Quanto aos Capitão Fausto: nada nunca os salvará que não a morte.

Voltando a currículos, isso é coisa que não existe nos Dandy Warhols, que sofrem do mesmo mal de Salvador Sobral: ficaram demasiado presos a uma canção específica, no caso "Bohemian Like You", que parece que levou muita gente a aderir à Vodafone. E é pena. Porque, já a noite ia longa, os norte-americanos deram uma lição de space rock até àqueles que nem fazem ideia do que seja essa merda, psicadelismo afogado em memórias dos 90s, que são memórias dos 70s, guitarras navegando ao sabor do mesmo vento que levou Colombo a descobrir a América.

Aninhados em palco, os Dandy Warhols elevam a sua música a onze, subindo o som como um cometa ou um satélite e descendo como um desejo por pedir, numa atitude rock de deixar água na boca. Por debaixo de um grande hype há sempre uma dúzia de excelentes temas, diria um ditado. Claro que não pôde faltar "Bohemian Like You", mas mesmo essa soou não a tentativa de nos vender telemóveis mas sim a precursor de todas as trips do mundo. Que é o mundo da publicidade comparado com a drogaria?Há, algures em Covas, que é algures no Minho, um restaurante com nome de pessoa que é casa para o melhor e maior costoletão que alguma vez irão comer fora do Texas. Ou até mesmo do Ribatexas. Não vale a pena pronunciar o nome, primeiro para o turismo não estragar aquilo, segundo porque é muito mais divertido chegar lá em modo geocaching. E com isto um gajo até perde a pena de não ter comido um sarrabulho durante estes quatro dias de estadia.

Não se sabe se Bob Geldof comeu sarrabulho ou se preferiu enviar umas doses para a Etiópia. Provavelmente, trocou-as pelo mega fato de leopardo que envergava, e que gritou envergar, precisamente nestes termos. Vilar de Mouros, nós somos Boomtown Rats!, e está feita a apresentação. Em palco, Geldof caminha de um lado para o outro como uma verdadeira estrela rock e não como o político que acabou por ser (há bastantes semelhanças entre ambos, dirão alguns), vai debitando um rock clássico e apunkalhado e não se esquece, sequer, de "I Don't Like Mondays".

This is not Vilar de Mouros, this is Boomtown!, reafirma, por entre loas a John Lee Hooker e ao rock enquanto salvação, por entre críticas a Donald Trump de pronto recebidas com assobios do público. O mesmo público que não se inibiu de saltitar num final efusivo, com um tema homónimo que não ficaria mesmo, mesmo, mesmo nada mal na Madchester do final dos anos 80. Porra, os Boomtown Rats sabiam fazer disto? Quem diria? E quem diria que existiam tantos fãs dos Psychedelic Furs em 2017, quando todas as suas canções soam à mesma?

A surpresa de uma noite mais repleta que a anterior coube aos Morcheeba, se bem que, pelo que se percebeu, os Morcheeba já não são bem os Morcheeba - e sim Skye Edwards e Ross Godfrey, um dos irmãos que formou a banda. A cantora esteve imparável, ainda que tímida, ou talvez mais o contrário de forma a caber que nem uma luva na sonoridade dos britânicos: há trip-hop, mas também há a vertigem das guitarras; há reggae em ritmo e em groove, mas também há um wah-wah a destruir uns quantos neurónios...

Não faltaram, como é evidente, os grandes êxitos: "World Looking In", angélica e vestida de veludo, "Otherwise", que apesar da letra não dói mesmo nada, e "Rome Wasn't Built In A Day", mesmo a fechar, com estrelas e mais estrelas a adornar o palco, réplica do mar de luzes que entretanto se ergueu sobre a audiência. A mesma que foi consagrada quando um dos seus sobre a palco a pedido de Skye para um passito de dança, naquele que há-de ter sido um dos melhores momentos da sua vida.

Antes disso, houve sobretudo um belíssimo concerto, que deita por terra a ironia da seguinte pergunta: ainda fazia sentido? Claro que sim. "Let's Dance", repescada a David Bowie, também fez sentido. Assim como a interpolação de "The Beautiful People", de Marilyn Manson, antes de uma indispensável foto de grupo com o público como pano de fundo. Assim como a nossa vontade de levar Miss Edwards para casa e tratá-la como a princesa que é. É pop, caralho, tudo faz sentido.

O que não faz sentido é saber que os gigantescos 2 Many DJs, conhecidos em certos círculos como The Fucking Dewaele Brothers, acham piada à "Everything Now" dos Arcade Fire, ainda que depois respondam com Blur e MGMT e Technotronic e Human League e, mais importante do que isso, com o monstro pop anárquico que dá pelo nome de KLF, cujo regresso não passou ao lado da dupla belga. Já eram menos os que se dignavam a dar aquela despedida à edição deste ano do festival - e o som junto ao palco esteve absurdamente alto - mas os 2 Many DJs ainda conseguiram fazer passar a sensação de rave. Festa que é boa acaba sempre, porém. Mas para o ano cá estaremos de novo.

Paulo Cecílio
pauloandrececilio@gmail.com
29/08/2017