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SWR Barroselas Metalfest XX
Barroselas
28-29/04/2017


Passa-te ao aço!, podia ler-se nos cartazes promocionais ao festival. Passa-te ao som de guitarras estremecendo o ar e os átomos, baterias trovejando e rebentando, guturais vindos da própria boca do Demónio. Passa-te à cerveja, e bebe-a no inferno como fez Rimbaud. Passa-te à sandes de porco, às espetadas estupidamente caras e às pizzas do Mannu's que, francamente, não valiam aquilo tudo mas que devoraste enquanto o Tico Soares fazia o primeiro... Passa-te a Barroselas e celebra, com eles, vinte anos de uma existência dedicada ao lado mais negro e mais pesado da música. Passa-te, porque não te cospe no bolo que se come, e Barroselas este ano soprou as velas de vinte anos de existência. Passa-te: faz 400km e presta-te a ver, salvo raras excepções, apenas as bandas de black metal que por lá passaram. Não que algum outro estilo interesse, como é óbvio.

Dia Um

A ideia era perceber se os Pillorian iriam manter a qualidade demonstrada pelos Agalloch ao longo da sua existência (principalmente no clássico Ashes Against The Grain), mas a chegada ao recinto deu-se demasiado tarde para que se pudesse determinar com exactidão. Apenas 15 minutos parecem ter chegado para perceber, no entanto, que os Pillorian «são mais uma banda que acha que shoegaze ainda é fixe», e aqui já estamos a entrar no campo da citação.

Adiante; a cerveja e o jantar impuseram-se e só começamos a vigésima edição de Barroselas "à séria" quando entram em palco os Aborted, nome há muito aguardado, especialmente após o cancelamento do ano passado. Quer isto dizer que, mesmo antes de subirem ao palco, já haviam conquistado o público - e prosseguiram com essa conquista através de um death metal sem rodeios que talvez abuse, ligeiramente, nos blastbeats. Mas isso nem sequer é mau, não é? Foi também aqui que vislumbrámos pela primeira vez o crowdsurf de um irrequieto Pikachu, mas o fideputa estava sempre a fugir antes que lhe pudéssemos atirar com uma Pokébola. Talvez para a próxima.

Numa masmorra repleta de fumo, os Ruins Of Beverast foram lordes com recurso a um doom negro que muitos viram de olhos cerrados, mente vagueando pela sombra e apresentando a sua rendição perante o peso absoluto. Os alemães não fizeram a coisa por menos, trazendo consigo Exuvia, o seu último álbum, e levando a que um dos mais próximos do palco a ele subisse e abençoasse a audiência, espécie de Papa em máscara de gás. Deus navega pela hipnose, mas também pela jarda inacreditável proporcionada pelos Inquisition, que parecem ter vindo a Barroselas ensinar à malta como se faz bom black metal, sem patetices ou momentos mais hipster. Som excelente, riffs e bateria idem, o corpo de Satanás exumado em música por dois colombianos idem aspas. Gigantes, claro, muito mais que os Antichrist, que apesar de tudo não conseguiram transpor para o palco o thrashzinho gostoso que os caracteriza. Melhor sorte para a próxima.Navegando pelas curvas da Facha a 90 km/h e escutando no rádio o Stankonia de OutKast, regressamos ao recinto a tempo dos Cobalt, banda que reuniu em frente ao palco principal imensos curiosos. Em representação da "nova vaga" do metal norte-americano e donos das t-shirts mais castiças das bancas de merch - se bem que o "Good Night, White Pride" do guitarrista leva o troféu para casa -, os Cobalt apresentaram um black metal idiossincrático que bebeu claramente de outras fontes, principalmente a do sludge; foi muito o peso escutado daquelas colunas e muito o medo que esse mesmo peso ia tatuando na pele. Ainda assim, talvez um pouco mais de volume tivesse tornado o seu concerto em algo de francamente memorável.

Seguiram-se os Goldenpyre, a banda da qual nenhum dos jornalistas ali presentes poderia falar mal sob pena de lhes ser negada acreditação para o ano que vem, já que em palco estavam nada mais nada menos que os irmãos Veiga, responsáveis pelo festival desde sempre. Daí que os Goldenpyre tenham dado o melhor concerto que alguma vez vimos na vida. Mas, longe do sarcasmo, proporcionaram uma boa hora de death metal com recurso, sobretudo, a In Eminent Disgrace, o seu novo álbum e que marca o seu regresso a estas lides após mais de dez anos de ausência. Naquele que foi talvez o concerto mais intimista do festival - por toda a carga emocional que dali advinha - o melhor momento esteve reservado para o curto momento black que envolveu três antigos membros da banda.

Não eram os Venom o grande destaque deste segundo dia, mas sim os Venom Inc., uma bastardização da banda original que ajudou o mundo a olhar para o seu abismo, despoletando todo um género maravilhoso. Apoiados em dois antigos membros dos thrashers britânicos, Mantas e Abaddon, os Venom Inc. foram desfilando versão atrás de versão, enganando os mais incautos e proporcionando umas boas gargalhadas aos menos aptos para a palhaçada; ou, ao invés, foram mostrando porque razão foram os Venom tão importantes, num concerto com um som excelente e que em nada prejudicou as memórias passadas. De facto é difícil julgar este concerto, já que as opiniões se parecem dividir entre esses dois extremos - foi uma merda vs. foi incrível. Mas acho que poderemos concordar todos que o circle pit from hell esteve bem composto, que "Black Metal" soa tão bem hoje como nos anos 80 e que só faltou mesmo "Heaven's On Fire" para que, como "Countess Bathory" o fez no final, toda a famiglia metálica pudesse sair dali com um sorriso no rosto.

Os Oranssi Pazuzu eram outra das grandes curiosidades deste segundo dia e não defraudaram expectativas; uma impressionante muralha de som ocupou, durante grande parte do concerto, a sala principal em tons que muitos considerarão "psicadélicos", na medida em que o black metal até pode ser psicadélico se nos lembrarmos que Charles Manson gostava de ácidos. Tidos como um dos grandes nomes do metal do século XXI, os finlandeses cumpriram mesmo quando o teclado foi com o caralho e prenderam a nossa atenção mesmo quando três miúdas decidiram ir para debaixo do palco fazer sabe-se lá o quê - porque o metal, ao que parece, também tem groupies. Os portugueses Grog, nome sonante da cena nacional e do grind em geral, deram um concerto coeso e pavimentaram a rua pela qual os Extreme Noise Terror aceleraram logo depois, com um concerto de punks para punks, sobretudo os que estavam à porta da sala esticando a cabeça o mais possível, já que comprar bilhete é para porcos capitalistas. Não houve KLF, mas houve uma versão dos Sham 69 e a certeza de que o punk é, e sempre foi, muito mais divertido que o metal. Ao menos não enferruja.Foi ao terceiro dia do SWR que tivemos de tomar uma decisão difícil: ficar pela arena e captar o black metal dos Marthyrium, ou seguir para o abismo e ser confrontados com o death estranho de Nader Sadek? Como qualquer outra pessoa com o mínimo de noção, ficámos primeiro a beber uns copos e só depois picámos aqui e ali, sem medos, e dispostos a elogiar tanto a ortodoxia e agressividade dos primeiros (sendo que "ortodoxia", aqui, não é uma palavra má) como a raiva ambientalista dos segundos, que com árvores em palco foram pintando o deserto com recurso à técnica e ao peso, sem aborrecer por um milímetro. Uma das belas surpresas que os XX anos do festival nos reservaram.

«MORTE AOS FALSOS» e «ORGULHO» foram as expressões que ficaram do concerto dos Corpus Christii, banda que sempre adorou Barroselas e vice-versa. Para o provar, revisitaram os temas presentes em Saeculum Domini, o seu álbum de estreia, deixando momentaneamente de parte o novíssimo Delusion. Na masmorra, mostraram porque razão são a melhor banda de metal nacional, mostrando o seu coração negro através do corpsepaint e dos riffs de "All Hail... (Master Satan)", com todo o público presente tomando parte do ritual. E terão amedrontado até mesmo os Akercocke, que não conseguiram dar um espectáculo que valesse do início ao fim, mostrando-se surpreendentemente melhores nos momentos mais melódicos mas espalhando-se ao comprido quando enveredavam pelo lado mais gótico da coisa. Demasiado inconstantes para que os pudéssemos levar a sério. Constante, só mesmo o álcool que nos levou a perder The Arson Project, mas seja como for estávamos quase a receber, de braços e cornos no ar, o único nome que interessava realmente de todo o cartaz: o dos Mayhem.

«A banda mais importante e influente na história do black metal», escreve Dayal Patterson no óptimo Black Metal: Evolution Of The Cult, essencial para se entender de que fibra se faz, ou fez, este círculo. Poucas bandas dentro do género poderão aspirar ao estatuto de gigantes, como os Mayhem; só mesmo Burzum ou os Darkthrone andarão lá perto, o primeiro ultrapassando-os de forma mínima (e só devido a Filosofem). Falar dos Mayhem é falar da criação não só desta música como também de todos os seus mitos, dos homicídios aos suicídios, da ideia de VERDADE e pureza ao caos anti-Cristão, da vontade de fazer de forma diferente e completamente DIY; falar dos Mayhem, repetimos, é guardar na mão o segredo para a chave de um ódio muito pessoal pelo resto. Nem as entradas e saídas de membros, nem a evolução na sua sonoridade os conseguiram abalar. Ou ao seu mito. Ver os Mayhem em 2017 e, ainda para mais, ouvir De Mysteriis Dom Sathanas ao vivo é uma experiência que quase poderia ser religiosa, não fosse a religião o alimento dos tolos.

Em Barroselas, o chamamento fez-se quando os Arson Project ainda tocavam. Dezenas de "fiéis" foram-se abeirando do palco para que nem uma imagem lhes fugisse dos olhos. Outros tantos foram contando os segundos que faltavam até que os noruegueses pisassem o palco. A witching hour aproximava-se a passos largos e soou finalmente, o som ruindo sobre as têmporas, riffs e blastbeats sujos aniquilando a ideia de ego. E Attila Csihar, que apesar de fã de Myrkur é um dos maiores frontmen da cena metálica, enquanto Papa apocalíptico de tudo isto. Durante pouco menos de uma hora de anti-missa, os Mayhem declararam guerra a todas as instituições, a todas as cenas, a todos os corpos celestes, congelando a lua e alimentando medos pagãos, enterrando o presente no tempo e na poeira e evocando Satanás em toda a sua glória. Dizer que foi do caralho é uma frase demasiado leve para descrever este concerto. Dizer que no meio da história de Barroselas pudemos testemunhar uma outra história, a de uma música feita por alguns para muito menos, talvez se aproxime. Dizer que depois disto nem valia a pena permanecer no festival é só ser-se honesto, connosco, convosco e com a música. E não valeu: acaba-se em Braga, vê-se Conjunto Corona e arruma-se as malas para voltar a sul e contar o que se viveu. Infernal, como só o poderia ser. ORGULHO, sim. ORGULHO.

Paulo Cecílio
pauloandrececilio@gmail.com
07/05/2017