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PJ Harvey
Coliseu dos Recreios
27-/10/2016


Os membros da banda entram um a um, em palco, marchando a um ritmo militar. A simbologia é notória; as canções de The Hope Six Demolition Project foram, afinal de contas, escritas por PJ Harvey durante as suas viagens ao Kosovo e ao Afeganistão, países onde o espectro da guerra não se desvanece por mais que se deseje a paz. Ela, no meio da parada e munida do seu saxofone, pouco diz para além dos versos ao longo de hora e meia, num regresso bastante aguardado mesmo que escassos meses antes tenha pisado a relva do Parque da Cidade do Porto. PJ Harvey não envelhece, e nós não envelhecemos com ela; continuamos a ser os miúdos que descobriram a sua poesia na ressaca do pós-grunge, mesmo que posteriormente a essa era. O tempo não parece existir, é construído.

Começa-se com "Chain Of Keys", canção retirada, naturalmente, a esse magnífico álbum que Miss Harvey editou este ano, uma canção que versa sobre uma mulher idosa, vestida de preto. Pelo menos a última parte diz-lhe respeito. A voz, décadas depois, permanece tão imaculada como quando Nick Cave a ouviu e se apaixonou perdidamente. Antes de conhecer-te já eu te ia beijar a tua casa, terá então pensado. Um amor ruidoso, bruto e em última instância inconsequente (como todos os amores). Ruído e brutalidade que desaguam em "The Ministry Of Defence" e quase que nos assustam.

Quase, porque PJ Harvey não quer, de todo, assustar-nos, mas sim levar-nos a pensar. Quando não pensarmos, ao menos que olhemos e escutemos embevecidos. Quando não nos assustarmos, enchamo-nos de esperança - "The Community Of Hope", uma gigantesca comunidade esperançada a encher o Coliseu inteiro. A banda certinha como um exército. Isto sim, é neofolk. Quase tão negra como qualquer outra proposta de cariz mais fascista, e nem precisa de se esforçar muito. "Let England Shake" puxará mais pelo público, a garganta daquela inglesa engolindo-o como um tubarão a sua presa. O coração também engolido enquanto ela se bamboleia por entre a valsa...

É PJ Harvey, é poetisa, e nós queremos ser também poetas para saber como incluir o seu nome numa frase. Queríamos dar-lhe livros - pelo menos uma mulher nas grades o tentou sem sucesso - onde a cantássemos, onde nos vestíssemos como o barqueiro que a puxa em seus braços. Queríamos ser António Guterres para que ela realmente nos trouxesse todos os seus problemas, conforme o canta em "The Words That Maketh Murder". E ainda nem tínhamos chegado ao tom sombrio, melancólico, operático, com o qual apresenta "To Talk To You". Como um deserto negro de Éden fechando as suas portas às nossas orações.

Se a efusividade é transformada em comoção em "Dollar, Dollar" - Coliseu silenciado, qual morte pairando -, o blues pesadinho de "The Ministry Of Social Affairs" e os Birthday Party que escutamos, encarnados numa "50ft Queenie", voltam a pôr-nos no trilho certo: não esquecer que PJ Harvey é rock n' roll. Por vezes é-o do mais sujo e desbragado. Muitas vezes traz a puta da casa abaixo, como em "Down By The Water" (se por afinidade sincera com a canção ou se pelo facto de ter sido esta a utilizada nos spots promocionais ao concerto não se saberá, mas vamos acreditar na primeira). E é aqui que fala finalmente ao público, apresentando a banda com um curto sorriso. Dela só ouviríamos um "obrigado" antes do encore, já "To Bring You My Love" havia ecoado por toda Lisboa, como quem se insurge contra Deus para espalhar o amor; o cântico escravo de "River Anacostia" e o final com "Guilty" e "The Last Living Rose" puseram termo a um concerto perfeito. Que mais poderia ser?

Paulo Cecílio
pauloandrececilio@gmail.com
06/11/2016