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Sapo Surf Bits 2005
Ericeira
02-03/09/2005


O reggae mergulhou de cabeça na praia de Ribeira d’ Ilhas. Encheu-se de boas vibrações o vale que, assim, viu os dias do campeonato mundial de surf WQS 6 (parabéns, Tiago Pires!) complementados por anexo musical adequado. As propostas fizeram-se representar pelos contingentes português, norte-americano e germânico (a crescer a olhos vistos por efeito de contágio), mas a bandeira mais honrada era a da Jamaica. Dissolveram-se todos os patriotismos na hora de celebrar a palavra de Jah e o nome da Ericeira ganhou um ligeiro sotaque, pronunciado de punho erguido e olhos semi-cerrados.

02/09

Tom Curren Band

Faz sentido que tenha cabido a um surfista dar início às actividades oficiais num evento que inclui a modalidade na sua designação. Ainda assim, não poderá a escolha ser dissociada de uma motivação honrosa. Tom Curren conduz - songwriting adentro - Bruce Springsteen e Neil Young na mesma short board O resultado, como seria de esperar, nem sempre é o mais eficaz e não foram poucos os presentes que associaram o músico a um colega de profissão que, muito por obra de apadrinhamento Harperiano, conseguiu encher o Coliseu de Lisboa. Tom Curren consegue preencher – sem ser particularmente inovador – a hora do dia em que o sol vai terminando a sua descida rumo ao oceano. Por esta altura, muita gente acompanhava, ali ao lado, a prestação do putativo vencedor do Buondi Billabong Ericeira Pro, o surfista local, Tiago “Saca” Pires. Acompanhado por uma pequena banda que contava com o baterista dos The Temple (o surfista local Rui Alexandre, que surgiu em cena por impedimento do baterista original), ameaça surf rock a cada introdução e termina em jams que parecem exorcizar a saudade de spots de sonho. Contudo, falta ali limar arestas à essência para que a fragrância da música de TC se faça sentir de forma mais intensa. O mar ainda estava flat.

Tom Curren Band © Hugo Rocha Pereira

Blasted Mechanism

Perante o contacto directo com o universo Blasted Mechanism, ganha relevo a ideia de que a composição cénica-estética da banda encontra-se invariavelmente adiantada em relação à música que veicula. Sobra a dúvida: terão os Blasted evoluído até um ponto transcendental no vistoso teatro que montam a cada concerto ou acusado em Avatar algum desgaste na ressaca de um Namaste que os consagrou? A verdade está lá fora: nos inconfundíveis grooves amazónicos, na acumulação de mantras futuristas, no vocoder manipulado com a determinação de um Mr. Spock. Tudo isso funciona e os Blasted Mechanism revalidam o seu potencial a cada concerto, mas é quase impossível recuperar o impacto de um primeiro contacto imediato com o mote “Nadabrovitchka”. Qual será a tradução Karkoviana para reincidente?

Blasted Mechanism © Hugo Rocha Pereira

Toot and the Maytals

Muito embora já numa cena do filme de culto reggae The Harder They Come, em cuja banda sonora original os Toots surgem representados por “Pressure Drop”, um pastor reverbere aos fiéis presentes na igreja, o gospel não fará parte da religiosidade mais associada a este estilo musical. Mas como canta Frederick “Toots” Hibbert, que já chegou a ser comparado a Ottis Redding, “Reggae Got Soul”.

E Hibbert, tal como o pastor the The Harder They Come, prende os fiéis da sua congregação. Mas em vez de bater violentamente no Livro Sagrado enquanto discursa, agradece ao Senhor, com uma voz doce e poderosa, a dádiva da vida. No Sapo Surf Bits fê-lo através de cânticos originais, como “54-46 – That´s My Number” (o titulo desta música, de que os Sublime já fizeram uma versão, alude ao número de recluso que coube a Hibbert após ter sido apanhado com ganja) ou “True Love is Hard to Find”, e alheios que arrancaram vários “Hallelujah” aos fieis.

Toot and the Maytals © Hugo Rocha Pereira

Da Weasel

Pela forma como redefiniram as suas músicas aos moldes reggae/ragga, a mutação operada pelos Da Weasel na Ericeira terá sido, pelo menos, inteligente e demonstradora de perspicácia. Além disso, Virgul está em casa quando o seu registo vocal sobrevoa as Caraíbas (Pacman viria a estar em “Casa” durante o solene dueto virtual com Manuel Cruz). E assim foi, entre um e outro mortal mais aparatoso, num concerto pautado por anímicas jams a invocar Marley até ao recinto. Com os polegares assentes num flow fulminante, “GTA” serve de mote. “O Puro” surge em fase inicial como a cartada trunfo (ragga, neste caso) que faz subir a parada. “Re-tratamento” – inevitável e cada vez mais vítima de desgaste – fez jus ao seu nome e, perante condições técnicas adversas, necessitou de um re-começo. A certa altura, “Toda a Gente” pôde assistir aos dotes de Virgul na prática de um misto de capoeira e breakdance. Já em encore, “Loja (Canção do Carocho)” surge como crónica de dependências promovida a ombrear com um par de sucessos que o público dos DW conhece de trás para a frente. Permanente oleados e robustos, a turma da margem sul enfrenta agora um desafio inédito na sua carreira: superar o cume imposto pela consagração do ano passado. Por cá, chama-se a isso “dar a volta ao pico”.

Da Weasel © Hugo Rocha Pereira

Germaican Roadshow featuring Pioneer & Ill Inspecta

O patrão da Germaican Records, editor de Dancehall, fechou as hostilidades de Sexta-Feira com um sound-system dedicado às tendências mais dançáveis e actuais dos ritmos oriundos da Jamaica. 03/09

Souls of Fire

Por natureza, o reggae pode até ser indulgente. Porém, não obriga isso a tomar por reggae de qualidade todo aquele que cumprir as premissas genéricas (e caricatas) do género: a variação quase imperceptível de um mesmo acorde, a disposição descontraída dos músicos em palco e a exploração constante de todas as declinações sintácticas para a palavra “Jah”. Os Souls of Fire sabem como preencher o espaço sonoro com um reggae exemplar (demasiado até), mas falta à sua música a base do género. Ou seja, a essência. A tardinha ardeu a chama branda, portanto.

Mishka

Um só amor, uma só coração, uma só arvore e uma só nação. Parecem ser estas a coordenadas que regem a escrita de canções a Mishka, o irmão da igualmente nómada (mas bem mais rockeira) Heather Nova. Em palco, o novo One Tree recua – como o caranguejo – a uma simplicidade de raiz que, enquanto a fórmula não acusa ponto de saturação,, vai subsistindo no final de tarde que recebeu Mishka na Ericeira. A espiritualidade que provém do surf é perceptível na comoção contida do músico (que também divide o tempo entre a prancha e a guitarra). Absorve-se um concerto deste cariz como um prato de mexilhões em molho de manteiga de ervas aromáticas. Com a genuinidade do seu songwriting (as parecenças faciais com Will Oldham só lhe ficam bem), Mishka pintou de púrpura a maresia que, mais ou menos intensamente, se ia fazendo sentir no recinto.

Mishka © Hugo Rocha Pereira

Cool Hipnoise

Por mais mudanças que o colectivo sofra, o balanço do funk (e do soul, jazz e outros ritmos negros) dos Cool Hipnoise continua Mem’Bom, agora com mais pitadas de reggae do que no início. “Brother Joe” será um dos temas que mais se enquadra naquele que foi, afinal, o prato forte deste festival de verão, e um dos momentos de destaque da prestação dos Cool Hipnoise, a par da versão de “Come as You Are”, dos Nirvana, e de “Groove Junkie”, que envolveu todo o público e na qual os vocalistas e desfiaram referências a diversas bandas, do cartaz do SSB e não só.

Cool Hipnoise © Hugo Rocha Pereira

Gentleman & The Far East Band

Ao que parece, a Alemanha não se acanha em complexos na hora de oferecer respostas ao que faz furor além fronteiras. Assim acontecia com os explosivos Toten Hosen e, muitos anos depois, com os Such a Surge (que, bem vistas as coisas, até estavam adiantados na senda do crossover). Gentleman serve como dois em um: entertainer incansável e digressionista de registos que têm o reggae apenas como ponto de partida. Safa-se bem o anfitrião (assim como a banda que traz consigo, com menção honrosa para a saxofonista) e no Sapo Surf Bits teve direito a tempo de antena redobrado devido ao cancelamento de Long Beach Short Bus. Dada a facilidade com que manipula e mantém o público em ponto de ebulição com os ritmos quentes (vindos de uma Alemanha habitualmente conotada com a frieza da sua matriz), quase parece que Gentleman podia prolongar o Sapo Surf Bits até ao amanhecer. Já bem perto do fim serenou a plateia com uma tocante versão a capella da universal Redemption Song. Pede Atlântico este cavalheiro.

Gentleman & the Far East Band © Hugo Rocha Pereira

Pow Pow Movement

Muito pó fez saltar este “sound-system” germânico, principalmente quando Tilmann Otto, mais conhecido por Gentleman, roubou a cena, dominando os pratos e o micro para puxar pelas hostes de quem há minutos se havia despedido. Ninguém se terá importado com as falhas técnicas da sua actuação.

Já antes o palco havia sido inundado pela beleza e sensualidade de várias raparigas que dançaram ao sabor dos ritmos quentes que encerraram a noite e o SSB.

O primeiro Sapo Surf Bits pecou apenas pelo cancelamento dos muito aguardados Long Beach Short Bus (recente ramificação da genealogia Sublime) e pela discrepância entre os dois dias (em termos de pertinência e - por tabela - de afluência). O festival ficou também marcado pelo colorido dourado dos finais de tarde e pelo decotado à vontade de grande parte das presentes (já houve quem o apelidasse de Sapo Surf Tits). A festa cumpriu-se com a euforia a fazer levitar os pés um pouco acima do chão e os ouvidos sintonizados no omnipresente reggae. Jah foi, e a aparência entusiasmante do embrião (saliente nas prestações de Toots & The Maytals e Cool Hipnoise) leva a crer que pode muito bem voltar a ser.


Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
02/09/2005