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Milhões de Festa
Barcelos
22-44/07/2011


Aquilo que define o Milhões de Festa não é o cartaz, por mais interessante que seja, ou a cidade, por mais bonita que possa ser, ou o facto de ter uma piscina, por mais bikinis que a povoem. Não: aquilo que define o Milhões de Festa é o dia zero, a véspera, o campismo a compor-se progressivamente mesmo antes da hora estipulada virtude de um simpático porteiro de idade, o encontro com semelhantes do e fora do mundo das redes sociais, a procura por um restaurante específico durante meia hora de caminhada e só se dar com ele porque a empregada teve pena de nós, o álcool que se bebe com bandas que lá vão tocar e com aqueles que vão escrever sobre as bandas que lá vão tocar e as conversas alimentadas a esteróides de lulz com malta que nos reconhece e elogia na rua porque, um dia, dissemos que os fãs de 30 Seconds To Mars eram merda. Ou seja: o que define o Milhões de Festa é o ambiente distinto, e quando o dizemos estamos a falar a sério. Isto não acontece em nenhum outro mais. E é por isso que o campismo ficou a abarrotar logo nesta noite. Já se tinha assumido o ateísmo nestas mesmas linhas, na última notícia sobre o festival; depois de se ter comido uma francesinha incrível, de se ter visto um golo inacreditável do João Moutinho e de se ter observado o pacifismo absoluto do chefe que tudo controla, qual Cristo, há que repensar esta posição. E ainda sem um único acorde tocado. PC

1º dia

E eis que chegamos então ao primeiro dia: alguns escondem a ressaca da noite anterior com novas doses de álcool, outros procuram obtê-la para o dia seguinte; os que chegam atrasados suspiram por um lugar à sombra onde colocar a tenda (e muitos falharam esse objectivo); o sol convida aos primeiros mergulhos na famigerada piscina e é vê-los (e las) a desfilar de toalha ao pescoço e chinelo no pé pela rua do campismo abaixo até à mesma. Vão-se reencontrando pessoas e conhecendo outras, vai-se almoçando aqui e ali seja via Pingo Doce ou Bar do Xano, vai-se esperando pelos primeiros concertos enquanto a temperatura ainda amena não corrói a pele dos mais sensíveis. E já que este é o festival de música português por excelência, inicie-se este texto com cinco bandas portuguesas, tantas quantas as quinas da bandeira nacional. Não por uma questão de patriotismo, mas porque foi o que apanhámos durante a tarde, falhando de propósito os Hayvanlar Alemi para tratar de uns assuntos. Não é xenofobia, juramo-lo. É reconhecimento de que por cá existe muita e boa qualidade. PC

E essa qualidade existe nos Hill, que são Miguel Azevedo, João Guedes e um guitarrista fantasma. Como? É isso exactamente: a guitarra que se ouve é aquela encostada ao bombo da bateria e que é tocada única e exclusivamente através da reverberação. Ou seja, não é uma bateria siamesa, mas um enxerto de pele. Um concerto interessante e ritmado que abriu o Milhões de Festa com o que mais o faz mover, que é o rock n´roll. PC

Rock n´roll que é omnipresente nos Black Bombaim. O trio stoner foi chamado quase à última da hora para substituir os Föllakzoid, mas ninguém há de ter dado pela falta destes. Não se o avaliarmos pelo concerto em si, onde o riff falou mais alto e deu à piscina o toque ácido que faltava para ser uma experiência arrebatadora. E só não foi o concerto do dia porque, de madrugada, assistiu-se a uma das reuniões mais esperadas do ano. PC

Depois de meia hora longe da água regressamos à piscina para ver os Glockenwise. Esses mesmos, os expoentes do Rock Sem Merdas. E, sendo nós dos maiores fãs dos miúdos de Barcelos, não podemos deixar de explanar aqui a nossa desilusão. Não que a culpa tenha sido deles, tal como há uns tempos não foi dos Botswana, mas sim dos demasiados problemas de som que não deixaram que os Glockenwise criassem ondas na piscina (© A1000car Rodrigues). Houve situações em que a bateria desaparecia, em que a guitarra não dava o som esperado e até uma corda partida. Assim sendo, o que tinha tudo para ser um dos melhores momentos acabou por ser dos menos conseguidos... ou então, é Deus a dizer que eles têm é de ser cabeças de cartaz e não banda sonora de mojito. PC

O atraso na chegada a Barcelos implicou a perda de alguns concertos que prometiam muito. Entre eles encontrava-se especialmente Dirty Beaches – o concerto na ZDB na noite anterior tinha sido belo e não haveria problema em repetir a dose, mesmo que Alex Zhang Hungtai se recusasse a tocar “True Blue”, haveria “Lord Knows Best” e muito mais. Após uma visita de reconhecimento ao recinto, fomos espreitar o palco SWR e, contrariamente às expectativas, não apanhámos com uma dose agressiva de metal, mas ouvia-se um pós-rock simpático. O palco do lado de Barcelinhos tinha ainda a vantagem de ter a cerveja mais barata (um euro, pois). NC

Muito depois da hora estipulada (convém dizer que pontualidade foi algo que não aconteceu neste Milhões, se bem que tendo em conta os concertos a que se assistiu isso não interesse para absolutamente nada), os Riding Pânico, totalistas das quatro edições realizadas até agora, sobem ao palco Vice para (re-)mostrar o seu cunho próprio de pós-rock aos que por lá começaram a aparecer. E sempre que o fazem surpreendem. Contaram com uma ajuda de peso - Chris Common, ex-These Arms Are Snakes, na bateria - e voltaram a fazer loas, através do riff, ao sol que se começava a pôr. Um belo concerto de uma banda que, virtude das raras aparições, continua a ser para muitos um segredo. PC

Havia uma indecisão sobre terminar esta piada idiota das cinco quinas analisando o concerto de Born A Lion ou o dos Motornoise. Escolhemos estes últimos porque o vocalista de Born A Lion possui sotaque brasileiro, o que desde logo os exclui. Isto não é um convite ao hate mail ou uma tentativa de arranjar convite para o Fórum Nacional, é mesmo o escriba que é uma besta com a mania que tem piada. (De qualquer forma os Born A Lion deram um concerto porreiro com bastante peso.) E vamos então falar dos Motornoise, e agora sim, provavelmente incitar ao hate mail: estavam completamente desfasados do resto do festival. São punks velhos e tocam um rock velho reminiscente das boas bandas dos anos noventa nacionais - mas, ao invés, soam aborrecidos e sem graça alguma. Pareciam contudo estar a divertir-se, e o vocalista era enérgico o suficiente para pôr a mexer o público que estava no Vice, mas o parco elogio acaba aí. Talvez com um estado de alma diferente se apreciasse melhor "O Vinho Anda A Cair-me Mal". PC

A viagem por terras estrangeiras começa então nos Æthenor, onde pontificam Daniel O´Sullivan e Stephen O´Malley, ou seja, Ulver e Sunn O))). Se havia o bichinho para os ver juntos, já que as suas bandas são estandartes do metal extremo, esse desapareceu à primeira noção de que os Æthenor são apenas e só uma banda de electrónica exploratória entediante (EEE[hhh...]), ou, muito resumidamente, Ben Frost sem colhões. Que, ao vivo, consegue ser bom q.b. para nos fazer aguentar mais de meia hora. Num espaço mais reduzido, quem sabe... PC

A brutalidade que faltou aos Æthenor fez inteiramente parte dos Shit And Shine. Dois coelhinhos, um doente mental e dois bateristas, drone electrónico e caos sonoro num estilo que lembrou os primeiros discos dos Swans. Isto durante o primeiro período em que andaram a testar as águas do público; depois arrancam num ritmo kuduro que pôs quase todos a dançar, de boca aberta e rasgada num sorriso, incrédulos com o que estavam a assistir. Essa mudança brusca há certamente de figurar entre os melhores momentos do festival, e não é para menos. PC

O primeiro momento altamente dançável do palco principal, oficialmente designado “Palco Milhões”, foi da responsabilidade dos Zun Zun Egui. Estes até estavam apontados ao palco Vice, mas uma troca levou-os até ao palco mais importante e, dizemos nós, muito bem: aquelas “guitarras africanas” (não é cliché, a sério, ouçam lá isto com atenção) deixaram pouca gente indiferente e desde logo, ainda dia claro, já muitos corpos se moviam em movimentos irrequietos. Vieram de Bristol, mas deram a volta à geografia e em Barcelos ouviu-se deles uma mescla sonora com preponderância africana, marcada por ritmos diabólicos. NC

Os Zun Zun Egui tiveram de trocar de palco com os Gama Bomb, e isso fez toda a diferença: só no Vice se poderia ter assistido àquela wall of death incrível que se formou aquando do pedido do vocalista. Os irlandeses saíram do baú dos anos 80 do thrash e deram aquele que era talvez um dos concertos mais aguardados desta edição, ou não se vissem por lá vários metaleiros a rigor com jaquetas de ganga e patches de tudo o que é banda, que rapidamente encheram o espaço. Os riffs que arrancam às guitarras soam datados, mas ao mesmo tempo como se estivéssemos a ouvir algo novo, como se nos tivéssemos esquecido deles durante o tempo que passámos a ouvir Metallica e Sodom e Kreator e afins na adolescência. Dois malhões: "Final Fight" (sim, sobre o videojogo, como que a confirmar o estereótipo do adolescente metaleiro nerd) e "Slam Anthem". Hão-de ter deixado satisfeitos todos os presentes, não só os fãs como os outros, até porque a sua boa disposição era contagiante. E ainda houve espaço para encore. PC

Sendo um festival efectivamente ecléctico, a verdade é que no Milhões nunca faltou rock. E por rock queremos dizer daquele rock másculo, enérgico, que não é definitivamente p´ra meninos. Os suecos Graveyard enquadram-se nessa categoria e no palco principal mostraram o seu rock semi-pesado, assumidamente herdeiro dos clássicos dos ´70s - Led Zeppelin, Deep Purple, Black Sabbath. Mostraram ter a lição bem estudada e foram desfilando riffalhada como se não houvesse amanhã. Mas havia ainda muita música a seguir e dali a meia hora já poucos se lembravam deles. NC

Para os Liars existiam grandes expectativas, mas acabou por ser um concerto algo morno. O trio, que ao vivo é quinteto, começou bem com o seu pós-punk de raiz tribal a fazer bater o pé, uma música assustadoramente dançável - pela guitarra violenta e batida pesada - que os tornou um caso sério. Ao longo do concerto, contudo, foram baixando de velocidade e mostrando o seu lado mais suave. "Proud Evolution" e "Scarecrows On A Killer Slant" são destaques óbvios, mas deles esperava-se muito mais. Ou talvez não, a julgar pelas repostas monocórdicas que deram em entrevistas durante a semana. PC

Não há volta a dar-lhe: os regressos dos Veados Com Fome e dos Lobster eram dois marcos da edição de 2011 do Milhões de Festa, visto terem marcado o início da actividade da editora por detrás do evento. A invasão dos veados, dos Veados Com Fome, deu-se ao grito solitário de Santo Tirso é lindo, e temas como "Cachalote" ou "Paquito" encheram de riffs crus e vertiginosos o espaço já a abarrotar de gente. Foi um concerto preparado especialmente para o festival, mas depois de tamanha grandeza só nos resta pedinchar por mais. Até porque há muita gente que ainda não sabe que não existe uma única banda má que tenha ido buscar o nome aos colossais Mão Morta (os Black Bombaim que o digam também). Há que ensinar os miúdos de hoje. PC

Já os Lobster deram um concerto áquem.





























































É ÓBVIO QUE ESTOU A BRINCAR. É QUE NEM NAS MELHORES EXPECTATIVAS DE UM GAJO ISTO PODERIA TER CORRIDO TÃO BEM, TÃO GIGANTE, TÃO MAJESTOSAMENTE ENORME QUE NÃO HÁ COMO NÃO DEIXAR UMA PESSOA PARVA A PENSAR "ELES ESTAVAM MESMO SEPARADOS"? NEM PRECISAVAM DE TER TOCADO NO MEIO DO PÚBLICO, MAS TOCARAM, E SÃO SEM SOMBRA DE DÚVIDA OS MONOTONIX DESTE ANO NO QUE TOCA À INCREDIBILIDADE, À ARRUAÇA, AO ROCK N´ROLL, A TODAS ESSAS CENAS QUE HÁ QUE DIZER PORQUE, FODA-SE, QUE CONCERTÃO. E SE MUDEI DE REPENTE PARA UM ESTILO MAIS PESSOAL E COM MAIS CARALHADAS E COM O CAPS LOCK NO MÁXIMO É PARA QUE PERCEBAM A BOJARDA QUE ISTO FOI. PORQUE ELES PRATICAMENTE NÃO PARARAM DURANTE O CONCERTO INTEIRO, SEMPRE LÁ EM CIMA, SEMPRE A REBENTAR, SEMPRE COM A ELECTRICIDADE NO MÁXIMO, SEMPRE MALHA ATRÁS DE MALHA ATRÁS DE MALHA E O PESSOAL A TORCER PESCOÇOS COM O HEADBANGING, CARALHO, INTENSIDADE NO MÁXIMO, O PATRÃO A PASSAR POR CIMA DE MIM DURANTE O CROWDSURF, O DEUS QUE SE AGARRAVA À GUITARRA NESSAS MESMAS OCASIÕES, QUE PUTA DE PATADA, ESTA É UMA DAS MELHORES DUPLAS DE SEMPRE, DE SEMPRE, VOLTEM, VOLTEM, CARALHO! VOLTEM QUE NÓS PRECISAMOS DESTA MERDA COMO DE SANGUE NAS VEIAS!

PUTA

QUE

PARIU
PC

O segundo dia é o pior dia de Milhões. Passa a adrenalina total do primeiro dia, e entra a depressão de se saber ser a véspera do seu fim. Claro que um fino à uma da tarde ajuda sempre a que esta passe, tal como ajuda o tempo a passar até nova vaga de concertos. E quando dizemos "vaga" queremos dizer "tsunami": se contarmos bem, o Milhões de Festa apresenta cerca de dezassete horas ininterruptas de música, desde o início dos concertos na piscina até ao fim no palco secundário. E isso atrofia o cérebro - e as pernas, principalmente daqueles que se recusam a estar sentados porque isto é o rock n´roll. E se é o rock n´roll, há que deixar de se ser menino e partir à busca de mais suor, de mais barulho, de mais abanões, de mais nódoas negras. E, assim, às duas da tarde na piscina já lá estávamos outra vez. PC

Desta vez para ver o início com os Traumático Desmame, que além de terem um dos melhores nomes de sempre, tocam uma espécie de doom arraçado onde não podem faltar os grunhos à Monstro das Bolachas e os risos demoníacos. Como quem diz, é tudo bom. Especialmente quando no final entra uma cantilena infantil e se põem a soprar (e a cantar) bolinhas de sabão. Início bruto na piscina num dia em que ia estar particularmente apinhada de força - seguir-se-iam os Mr. Miyagi. PC

No segundo dia de festival tivemos a oportunidade de conhecer o Palco Lovers & Lollypops (L&L). Dos diversos palcos secundários do Milhões, o L&L era aquele que apresentava menos glamour - e apesar da localização ser a margem do Cávado, o acesso ao rio estava vedado. Foi nesse palco L&L que os barcelenses Indignu se mostraram. Desenhando um pós-rock competentíssimo, devedor dos inultrapassáveis Godspeed You Black Emperor!, revelaram um grande à-vontade a explorar o género, sofrendo com alguns problemas de som. Seguiu-se no mesmo palco a actuação dos americanos Karma To Burn. Repetentes da edição do ano passado, onde tocaram no palco principal, mostraram desta vez no palco L&L o seu hard rock clássico, tipicamente old school, absolutamente instrumental, profundamente enérgico. NC

No palco principal os Tigrala mostraram uma faceta que não lhes conhecíamos. Se no disco homónimo, editado no ano passado, se ouvia uma folk “fusionada”, desta vez Guilherme Canhão, Norberto Lobo e Ian Carlo Mendoza estiveram ligados à corrente. Mostravam uma veia claramente electrificada, com as guitarras de Lobo e Canhão em exploração e confronto, numa jam em aproximação psicadélica. É verdade que não mostraram aquilo que lhes conhecíamos em disco, mas apesar do choque inicial não nos deixaram desiludidos. NC

Porque o Chungwave não se explica, sente-se, decidimos ignorar a palestra e chegar ao bar do Xano quando esta já estava perto do final. Enquanto nos decidíamos sobre onde seria o jantar (que acabou mesmo por ser aí, ao som dos Feia Medronho e de "Pinta Natural"), aproveitámos para assistir a três dos concertos inseridos na apresentação do chunga. Iniciando com os LSD Mossel, duo holandês de grindcore acústico - sim, é tão bom como soa, e está bastante perto daquilo que o falecido Seth Putnam fazia enquanto Impaled Northern Moonforest. Para além de contarem com a preciosa ajuda nos grunhidos do vocalista dos Traumático, possuíam igualmente o melhor saco do Lidl de sempre. Esta foi a segunda vez que os apanhámos: a primeira havia sido no campismo, eles que tocaram um pouco por toda a parte. Seguiu-se-lhes o projecto (só para não estarmos a escrever sempre "banda", até soa mais literato e etc.) The Macaques, mais conhecido pela malha viral "É Bairrada", mais conhecida por ser cantada por João Moreira, mais conhecido por ser a voz de Bruno Aleixo. Os Macaques são do rock, e não só cantaram "É Bairrada" duas vezes, como ainda apresentaram dois temas de intervenção: "José Mourinho" e "Ana Bacalhau", o que motivou uma mini-rusga policial que terminou sem incidentes. Finalmente, e porque era um dos mais esperados: a Foice Humana deu uma grande e nada alcoolizada lição de mosh, em tempo real, deu àquela ruela a possibilidade de entrar para a história como um dos poucos sítios em que um dos maiores hinos do chungwave - "Super Bock UAU" - foi tocado ao vivo e ainda teve tempo para insultar os bebés que não têm estofo para aguentar um concerto rock (e é por estas e por outras que gostamos tanto da Foice). Entre viagens por uma Ibiza chunga houve ainda tempo para "Ovos Estragados", a tal que é a Chinese Democracy do rasca. E que bom que foi. PC


Se um dos objectivos do Milhões foi mostrar as bandas locais, cumpriu-o com toda a propriedade. E foi ainda mais além, ao ressuscitar projectos que já se encontravam defuntos. Os Kafka tiveram a sua existência entre 1997 e 2005 e voltaram ao activo para mais um exclusivo MdF. Com honras de palco principal, os Kafka mostraram o seu rock urbano-depressivo típico do noventas tardios, uma música algo cinematográfica, numa encruzilhada onde os Tinderticks e os Mão Morta se cruzassem para jogar à sueca. Talvez o prazo de validade já se encontrasse próximo do limite, mas ainda foi possível consumir sem receio. NC

Já era noitinha quando as Vivian Girls sobem ao palco principal para tocarem ao vivo não só os temas do mais recente Share The Joy como dos dois discos anteriores e que as puseram nas bocas de quem gosta de rock fofinho. A atenção está virada, claro está, para a docemente ruiva baixista que ainda desceu ao público e piscou olhos ao imóvel segurança, ainda que não tenha mostrado as mamas após desafio. As guitarradas de "I Heard You Say" e "The Other Girls" estamparam um sorriso na cara de muitos - dizia Nuno Rodrigues, por exemplo, que isto era música completamente Sem Merdas que o fazia sentir bem. E se o Nuno o diz quem somos nós para o contrariar? PC

A expectativa era grande para ver os Antipop Consortium, mas a demora no soundcheck e o consequente atraso acabou por marcar a actuação do grupo no palco Vice. À medida que o atraso aumentava, decrescia o entusiasmo do público, de forma proporcional. Ainda assim, a partir do momento em que o concerto arrancou os APC souberam conquistar o público, combinando batidas irrequietas com rimas fluídas e tensas. Não se concretizou o cenário épico que se antevia, não desiludiu, não surpreendeu. NC

Se a primeira noite teve como vencedores incontestados os Lobster, os vencedores da segunda noite vieram de Itália. Os Zu mostraram no palco Vice uma incrível brutalidade sonora alimentada por uma atípica santíssima trindade instrumental: saxofone barítono, baixo eléctrico e bateria. Apesar de terem passado pelos diversos palcos dezenas de guitarras, foi o improvável trio que concretizou a dose de maior violência sonora na noite de sexta-feira. Luca T. Mai (saxofone), Massimo Pupillo (baixo) e Balazs Pandi (bateria) ensinaram aos meninos do metal o que é agressividade sonora e incredibilidade criativa. Reclamando a herança directa do avô Brötzmann – que, lembremos, gravou o manifesto Machine Gun em 1966 - estes herdeiros estarão abençoados. NC

Era difícil aos Secret Chiefs 3 suplantar o porradão sonoro que foi Zu, mas deram um belíssimo concerto. Os druidas subiram ao palco para tocar aquilo pelo qual são conhecidos: um caldeirão musical com influências do Caribe às Arábias, variando de uma maneira incrível - começam com música a puxar à dança do ventre, acabam a rasgar nas guitarras, mostrando sempre um sentido claro e uma enorme destreza. Sendo este o ano em que decidiram escolher Portugal como nova casa, com datas em quase todos os pontos do país, não podiam deixar de ter um lugar reservado no Milhões, e ainda bem que assim foi. E não faltou uma cover fantástica do tema-título de Exodus. PC

É óbvio que Bob Log III não poderia tocar noutro palco senão aquele de todos os vícios. O homem por detrás da one-man band para acabar com todas as one-man bands epitomiza o que deve ser o rock, mais concretamente o seu pai por natureza: o blues javardo e tocado com uma perícia tão inacreditável quanto verdadeira - não lhe conseguíamos apanhar os movimentos das mãos por mais que tentássemos, uma verdadeira lição de guitarra. "Log Bomb" foi o primeiro grande momento, mas é em "I Want Your Shit On My Leg" que tudo toma uma direcção estratosférica (e não é por causa do capacete e do fato brilhante), com a ajuda preciosa da Sónia e da Daniela, que já podem dizer que estiveram ao colo do tipo mais fixe de sempre. O desapontamento (pequenino, pequenino) aconteceu em "Boob Scotch" - só houve a canção, faltou o scotch. Mas ficou uma grande mostra de rock. PC

E ao terceiro dia a adrenalina surge outra vez porque há que queimar os últimos cartuchos antes de sair de Barcelos. Por esta altura já há imensos escaldões e músculos doridos, mas que se foda: há que acabar em grande. Assim se esgota a lotação da piscina pelo terceiro dia consecutivo (e desta vez com uma fila *ainda* maior), se provam os últimos mojitos e se fazem os últimos planos no que toca aos concertos do dia. Como que a querer confirmar esta despedida, o sol arde com maior intensidade - sem dúvida o mais quente dos três (quatro) dias em Barcelos. Duas das bandas que foram obrigadas a cancelar no dia anterior - as Kim Ki O e os MKRNI - encontraram o seu espaço neste dia, tocando na piscina um pouco mais cedo. Porque se o Milhões promete 74 bandas, o Milhões cumpre com 74 bandas. Salvé. PC

As Kim Ki O colocam-se então debaixo do toldo por volta da uma e meia, duo feminino de baixo e sintetizador que toca uma synthpop bonitinha com traços de verão - ou seja, não terem tocado no Vice até foi bom. Já que a água ainda estava demasiado boa poucos lhes ligaram, mas às meninas de Istambul não se poderia pedir muito mais que não uma mostra decente de background music. PC

Ao terceiro dia o programa de concertos da piscina é completamente alterado. E ainda bem, que assim dá para apanhar ao vivo uma quantidade de coisas boas, enquanto vamos espreitando na piscina outra grande quantidade de coisas boas. Depois de Kim Ki O chegaram os MKRNI, que perderam o avião no dia anterior, mas chegaram a tempo de transformar a zona da piscina numa espécie de pequena Ibiza, conseguindo impor um ambiente dançante (apesar da hora apelar mais à tranquilidade de uma sesta). Seguiram-se os Narwhal, que começaram de forma minimal, com um drone que foi crescendo de forma progressiva até se transformar numa agradável onda sonora. Já os Nazka levaram à piscina um rock desinspirado, que de psicadélico teve pouco – oportunidade para voltar a dar uns mergulhos na piscina, que estava ficando calor. NC

Já ao final da tarde chegaram as Pega Monstro, que levaram ao palco da piscina o seu rock simples, rugoso, directo e naïf. Riffs acesos e bateria tensa, letras incomparáveis: “Ó Bernardino / tu de Fachada não tens nada / porque com essa barba / eu fico molhada”; “Eu fui a um festival / comi pouco, fiquei mal / apanhei uma infecção (...) / e as gajas do Porto são mais giras do que eu”. Estas duas canções ficaram guardadas para o final, acabando por recolher os merecidos aplausos - especialmente “Paredes de Coura”, o hit sem igual, o fecho perfeito. NC

O palco da Lovers & Lollypops era sem dúvida o mais difícil de encontrar e alcançar, especialmente para quem ansiava já por um colchão. No entanto, esta caça ao tesouro foi recompensada com um excelente concerto dos Equations, pós-hardcore portuense, enérgico e agressivo q.b. e dono de malhões como "Running With Scissors" ou "Hero Cities Of The Soviet". Pese a salganhada em palco - cinco pessoas, um porradão de instrumentos e gadgets, houve muito chão onde pisar e até um mini-crowdsurf por parte do vocalista. Não só: Makoto Yagyu e Ricardo Martins deram igualmente uma perninha, assim como um senhor intitulado Bartholomew Faraday, nu da cintura para baixo, o verdadeiro momento rock out with your cock out, presenciado por trinta pessoas e, crê-se, nenhuma objectiva: ou seja, o Milhões de Festa 2011 teve aqui o seu momento mítico. E ninguém, ou quase, sabe ou saberá. PC

Quem abre o palco da Vice é não um, mas dois grupos: os Throes juntam-se aos The Shine e dão um concerto de abanar a anca e o pescoço; chamam a isto rockuduro, e se há quem não tenha visto ou ouvido sequer, há ali uma Videoteca à mão para que percebam que esta colaboração vai dar grandes frutos. E é, naturalmente, um momento mágico para qualquer melómano que procura incessantemente novos sons. A dança foi imprescindível num concerto que peca por ter estado ainda desprovido de algum público - imagine-se o que seria se tivessem tocado mais à noitinha. Tá cuiar! PC

Não vimos os FM Belfast virtude de termos estado ocupados com outros eventos de maior importância, mas ouvimo-los. Os islandeses também procuram meter gente a dançar, e vão buscar influências e samples a todos os lados possíveis - ouviu-se RAtM, ouviu-se a colossal "Pump Up The Jam" dos Technotronic, ouviu-se os grandes Underworld. E terminam com "Welcome To The Jungle". Classe. PC

Já toda a gente deve saber que os Papa Topo são a banda mais fofa da Península Ibérica. Toda a gente sabia menos o técnico de som, que se esqueceu de ligar o microfone de Adrià e deixou a doce Paulita a cantar sozinha. Apesar do som imperfeito, Paulita e Adrià (e com o auxílio de outro rapaz) superaram as dificuldades e mostraram em Barcelos uma série de canções originais (sobre temas interessantes como sexo no cinema), além de ter havido ainda espaço para uma revisão de “Ça Plane Pour Moi” de Plastic Bertrand. Para o final ficaram guardados os temas mais conhecidos, os deliciosos “Oso Panda” e “Lo que me gusta del verano es poder tomar helado” (justamente aplaudidos), fechando com a nova “La chica vampira”. Apesar das dificuldades, a dupla sobreviveu e representou condignamente o twee-pop espanhol – ou, nas palavras de um certo crítico pontualmente palerma, a “childwave”. A papatopomania está a crescer. NC

We Trust anda a correr pelas bocas do mundo desde que "Time (Better Not Stop)" foi escolhida por Hugo Boss para uma das suas playlists. André Tentúgal apresentou-se rodeado de vários outros músicos que o ajudaram a concretizar a sua pop de onda Air-iana (sem nazismos, p.f.), canções ternas e contemplativas onde a melodia é quem mais ordena. Destaca-se a colaboração dos Dear Telephone e, claro, aquela música. Estreia magnífica e um lugar merecidíssimo no palco principal. PC

Os Green Machine quiseram ser enterrados no Milhões de Festa, e antes disso encheram o secundário de caos rock n´roll e com a energia inesgotável do vocalista João Pimenta. Aqueles que, diz-se, inspiraram outros barcelenses a sair do tédio e a fazer coisas, despediram-se com malhas como "Tales From An Expectant Pussylicker", referências a Screamin´ Jay Hawkins (outro dos grandes), e com uma mega-promoção em que um EP, um disco e uma t-shirt custava apenas três euros - o que posteriormente levou a uma fila imensa na barraca do merch. Não só foram o melhor concerto do dia, por tudo associado, como foram um bofetão de mão fechada nos idiotas que diziam que o Milhões de Festa só levava bandas portuguesas porque são amiguinhos. Não: levam-nos porque têm qualidade. Muita. Green Machine is fucking dead! PC

Regressadas ao activo, e regressadas ao Norte de Portugal depois da passagem por Coura em 2007, as Electrelane mostraram no Milhões a sua muralha de guitarras. Não faltaram temas clássicos como “On Parade” e “If not now, when?”, emulando ao vivo o som típico dos discos: guitarras tensas quase em rebentamento, pontuais apontamentos nervosos no piano. Esta actuação foi ainda marcada pelas covers, que o quarteto interpretou sem medos nem preconceitos: a boa/estranha “Smalltown boy” (Bronski Beat), a épica “The Partisan” (Leonard Cohen) e, já no encore, a incendiária “I´m on fire” (Bruce Springsteen) – não se podia pedir melhor final. NC

Star Slinger é dono de um disco enorme - com o simples nome Volume 1 - e pôs todos a dançar ao som do beat um hip-hop estranho e psicadélico que vai buscar samples ao r&b para dar substância; não faltaram temas como "Mornin´", "Pass The Dutchie" e uma remix de "Out Getting Ribs", de Zoo Kid, para fazer mexer todos os que lá se encontravam. Belíssimo concerto, e é sempre bonito ver a malta do rock e do metal a apreciar um bom ritmo electrónico. PC

Washed Out estreou-se em Portugal com o novo Within And Without na bagagem, mas acabou por dar um concerto algo morno, mas bom o suficiente. Assim como We Trust, solicitou ajuda a outros músicos. "Amor Fati", claro, foi a canção melhor recebida pelo público, que encheu aquele espaço do recinto mesmo em frente do palco para ver como alguém tenta superar o rótulo chillwave. Ao vivo as suas prestações são mais elaboradas e com menos cabeça na lo-fi, mas a cultura retro anos 80 está omnipresente. A synthpop versão Washed Out tem pernas para andar, mas falta-lhe qualquer coisa para ser imperdível ao vivo. PC

Os Foot Village acabaram por ser outra das grandes surpresas deste festival: são quatro, em círculo, todos bateristas, e estão sempre a rasgar com um ritmo tribal e entusiasmante, uns Boredoms mais crus e muito mais espasmódicos, completos com uma menina asiática de calção de dar asas à imaginação. Completam-no com pequenos pózinhos electrónicos e o tradicional grito hardcore, mas é mesmo a sua energia na percussão que obriga ao mosh. Um dos melhores concertos do festival, ainda mais para quem não os conhecia. PC

Os Radio Moscow parecem ter vindo para humilhar as grandes bandas nacionais de rock que passaram pelos palcos nos dias anteriores. Nas suas mãos o riff é constante e nenhum acorde é desperdiçado, o baixo tem um groove imenso e a bateria faz mover corações e coloca cornos no ar. O seu blues pesado andou tanto pelo disco homónimo como por Brain Cycles, bojardas rock n´roll a levar (e a elogiar) a loucura. Quase como que a querer mostrar a alguém néscio que os Led Zeppelin foram de facto a melhor banda do mundo. E terminam com um encore absurdamente inacreditável, juntamente com a promessa de cá voltar ainda este ano. Depois deles os dois últimos concertos nem interessaram para nada. PC

Termina assim o Milhões de Festa. Um evento maior que as nossas vidas. É exagero? Não se sabe; tem de se lá ter estado para o poder dizer sem ponta de mácula. E é por aí que uma melancolia imensa se apodera de nós quando o campismo começa a esvaziar e as tendas precisam de ser arrumadas, os amigos se despedem e Barcelos não é mais que uma memória viva. E existe, com certeza que existe, a percepção de que andámos em cima de uma onda gigante que acaba de embater na costa, e o mar regressa à acalmia do costume. Acaba por conter em si uma estranha bipolaridade: é demasiado curto para que nos acabe com a fome, mas é demasiado grande para que não nos sintamos satisfeitos sempre. Cada qual que lá esteve com mais um motivo para sorrir e para ansiar durante os 360 dias que faltam até nova edição. A vida são dois dias, o Milhões são três. PC

Paulo Cecílio e Nuno Catarino