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Kronos Quartet / Victor Gama
CCB, Lisboa
21/11/2010


Apetece recuperar o inimitável entusiasmo do jornalista Carlos Pinto Coelho para descrever o que se passou no Centro Cultural de Belém, na noite de domingo. África esteve, de facto, ali. Na recta final de um fim-de-semana tumultuoso, era possível chegar tranquilamente ao CCB e reparar num grande expositor, que dava conta da estreia europeia da peça Rio Cunene, escrita por Victor Gama para o Kronos Quartet. O concerto, que encerrava o Festival Temps D´Images, assumia os contornos de ocasião especial. No seguimento de uma estreita colaboração, que decorre desde 2005, e depois de uma primeira apresentação, no Carnegie Hall de Nova Iorque, o Rio Cunene desaguava finalmente em Lisboa e o empolgamento era constatável.

Todo o empolgamento é, de resto, legítimo, quando estamos a falar do Kronos Quartet e de Victor Gama - nomes que podiam facilmente acomodar-se na reputação adquirida com os anos, e a partir daí ganhar a vida com bandas-sonoras e trabalhos fáceis, mas que preferem, em vez disso, continuar a avançar com colaborações improváveis e projectos tão interessantes e arrojados como este que deu fruto em Rio Cunene. Nessa tal missão de renovação, o Kronos Quartet é quase lendário pela infindável quantidade de compositores que já transpôs para as suas cordas (as de dois violinos, uma viola e um violoncelo). E é esse ecletismo que confere magia a uma primeira parte, em que o quarteto interpreta música oriunda de África sem olhar a restrições de tempo, território ou género: foram assim do mais tradicional compositor egípcio Hamza El Din ao jazz do saxofonista Etíope Gétatchèw Mèkurya (que tocou recentemente com The Ex), e tudo soou fluente e puro, como se deseja.

Igualmente natural é a interacção de Victor Gama com os seus Pangeia Instrumentos, quando dá início à segunda parte para tocar a sua peça SOL(t)O. Em relação à última vez que a escutámos (no Teatro Maria Matos, em Maio), SOL(t)O surgiu numa versão mais curta (quase pela metade), mas que não deixou de passar pelos mesmos três instrumentos: o acrux, a toha e o dino. Cada um deles marca um tempo na complexa intriga política relatada nas legendas de SOL(t)O. Desta vez, Victor Gama beneficiou até do feliz acidente provocado por algum ruído – esse que carregou ainda mais a atmosfera de toda aquela história do carro que caiu na ravina e das provas que desapareceram. Sem a mesma necessidade de acompanhar o texto, já lido no Maria Matos, sobrou concentração suficiente para perceber que a música de Victor Gama, tal como a do grande Gustavo Santaolalla, nos filmes de Iñárritu (Babel), consegue sugerir vias de reflexão sem nunca ser tão declaradamente política como os contextos que aborda.

Eis então que chega a hora da Europa conhecer Rio Cunene. O público presente no CCB é etariamente diverso e existe sempre alguém que entende por bem partilhar as suas reacções em voz alta. Como se fossem responsáveis por uma faixa de comentário num DVD de coleccionador, duas senhoras acompanham o filme projectado, durante Rio Cunene, com alguns apontamentos de rodapé: “Olha o contacto com a natureza. Este rio não tem peixes.” Não se acanham também de ler alguns dos nomes no ecrã: “A Agripina. Nénê. Flora." Os últimos pertencem a algumas das crianças do Xangongo, localidade situada na província do Cunene, em Angola, e ponto especialmente afectado pelas guerras travadas no país. Depois de uma primeira parte de arranjos amplos, que acompanham uma panorâmica (Google) do rio, a peça dedica as duas partes restantes a uma música mais lúdica certamente inspirada pelas crianças do Xangongo. Pela forma como dá uso a alguns instrumentos rudimentares (também tocados pelo Kronos Quartet), que os miúdos criaram a partir de materiais deixados pela guerra, Rio Cunene mostra como a adversidade pode passar a ser musicalidade (e alegria). É também essa a ideia que sobra das imagens finais, em que um tanque de guerra passa a ser um parque de diversões para os putos.

No livro de apresentação de Rio Cunene, distribuído no CCB, a seguinte pergunta surge logo na primeira página: “A música pode conquistar a paz?” Na cara de uma cimeira que negoceia a guerra e durante duas horas, o Kronos Quartet e Victor Gama fizeram-nos acreditar que sim.

Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
23/11/2010