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Animal Collective, "ODDSAC"
Auditório da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, Lisboa
02/06/2010




A estranheza cumpriu a sua promessa no Auditório da Faculdade de Belas Artes, em Lisboa, e ODDSAC é - em jeito de paradoxo - realmente semelhante ao que se antecipava e suficientemente livre para que nunca chegue a ser previsível. Durante aproximadamente 54 minutos, o que ODDSAC nos oferece é uma colagem de visuais psicadélicos para nível intermédio e pedaços de narrativa extraídos ao imaginário Animal Collective que permanece a cantar o fantástico e o horrendo num acampamento de miúdos (a plataforma de muitas das primeiras canções). Em certos momentos a fronteira desfaz-se e os psicadélicos interferem na narrativa, e vice-versa. O resultado disso consegue ser hostil, é certo, mas um filme que nunca chega a ser estável é, no fundo, perfeito para ilustrar uma banda que ainda não teve paramento durante os últimos dez anos de activo.

A grandeza dos Animal Collective na anterior década passa também pela maneira como conseguiram transformar condicionantes diversas em contextos criativos de alto rendimento. Conseguiram, por exemplo, converter a saída da guitarra de Deakin (tantas vezes essencial) na oportunidade ideal para abusar da electrónica nas malhas coloridas do quase consensual Merriweather Post Pavilion. Serve isto para explicar que nem sempre deve ter sido fácil compor música (às vezes ruído e sine waves) para um filme experimental, numa altura em que o estado mental dos Animal Collective estaria igualmente ocupado com as canções (tradicionais, vá lá) de Strawberry Jam e Merriweather Post Pavilion. A riqueza de ODDSAC reside também nas distâncias estéticas que os Animal Collective decidem (voltar a) percorrer para acompanhar os cenários transgressores e algumas abstracções criadas pelo realizador Danny Perez (lunático, provocador e um gajo que ainda promete dar muito).

Contudo, ODDSAC também inclui canções, mesmo que essas possam perder algum sentido quando forem escutadas em bootleg por toda a internet (Panda Bear garantiu, nas respostas ao público, que não serão lançadas separadamente). As duas canções de voz transparente soaram próximas do que poderia ser um terreno partilhado por Campfire Songs e Sung Tongs, o que só pode ser excelente. Aqui, tal como nas adaptações de velhos temas ao vivo, os Animal Collective conseguem ser notáveis quando voltam a escavar a sua própria fertilidade. Outras passagens andaram mais perto do suspense atmosférico interrompido por um estrondo capaz de pregar cagaço. Um pouco como se o grito que rasga “People” (o single à parte da fase Feels) passasse a ser um ribombar de percussão ou uma chicotada de electrónica defeituosa desferida numa superfície mansinha. O efeito dramático desta ruptura é quase sempre eficaz, e completamente certeiro numa cena em que um Panda Bear disfarçado toca bateria em cima de um mar de calhaus.

Algumas conversas à saída comparavam ODDSAC a uma espécie de Canal Animal Collective mal sintonizado. É um pouco por aí, sim. ODDSAC funciona muito como um zapping alucinado que atravessa, em simultâneo, os vários canais de um imaginário denso (formado pelos discos até Sung Tongs, inclusive) e as diferentes frequências AM (tudo aquilo que é mais bruto e menos linear) de uma banda que tem vindo, desde Feels, a revelar a sua própria faceta FM mais límpida e pop. Tudo isso numa sinergia (entre a visão do realizador e do colectivo) que, ao misturar componentes tão fortes, produz efervescência e algum resíduo também. Apetece tanto esquecer ODDSAC como voltar a ele numa realidade em que passou a ser um canal interactivo disponível 24 horas por dia. E uma obra que repele tanto como atrai é também aquilo que se quer da arte.

Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
04/06/2010