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Dälek + Oddateee
Galeria Zé dos Bois, Lisboa
24/05/2005


Desconhece-se se as pessoas, em geral, percebem ou não o hip-hop que não passa na TV, e se é isso que as faz ficar em casa quando uma das mais contravencionais bandas vem a terreiro. Certo é que, quando Oddateee subiu ao palco da ZDB para fazer o warm-up, a sala estava às moscas. Numa actuação afivelada a um alinhamento de Oktopus (produtor do colectivo que se seguia) e a versar por cima, o músico natural de New Jersey, “co-coming from the hood”, teve algumas tiradas brilhantes e outras menos boas.

Sozinho, sem o DJ que o costuma acompanhar em digressão, Oddateee apelou a um sentimento de comunidade, a uma aproximação das pessoas ao palco, à coisa dialógica que marcou os primórdios do hip-hop. Saiu-se bem, ainda que o público, que ia agora crescendo, nem sempre respondesse. Arrepiante foi o número em que desfiou, uma por uma, as mortes de gente próxima, o tipo alvejado por 450 dólares, o trompetista, a miúda com Sida, etc. Mas insistiu em mostrar às pessoas como se escrevia o seu nome artístico e em malhar no DJ, aquele “asshole” que não marcou presença.

Compreende-se a necessidade de preencher os espaços mortiços enquanto o computador não devolve a faixa seguinte, mas às vezes a repetição sem brilho aborrece. No que realmente conta, Oddateee fez um set competente e percebeu-se por que é que os Dälek pegaram neste miúdo. Sai-se melhor quando se agarra ao groove do baixo para pôr a voz, do que quando tenta furar a bateria ou o material samplado de que se faz acompanhar; nestes, a voz fica abafada e é difícil ler as suas palavras. Qualidades de MC não lhe faltam, falta-lhe talvez maior capacidade de encaixe, mais cola criativa que torne a sua música mais forte e coesa, da raiz até às pontas.

Mas a noite era dos Dälek (lê-se “dialect”, para quem ainda não sabe). Colectivo formado por Dälek, o peso-pesado, o MC e principal produtor, Oktopus, produtor também a cargo das teclas, e DJ Still, o gira-disquista de serviço, senhor da mais swingante cabeleira afro. Os Dälek de Negro, Necro, Nekros, o primeiro disco editado em 1998, não são já os mesmos que se apresentaram na Galeria. Entretanto cresceram muito e, sobretudo, cresceram muito depressa. Uma das obras maiores foi o disco que gravaram a meias com Faust, nome intocável do krautrock germânico.

Ao vivo, tudo é diferente, é tudo mais descontrolado, mais sónico, mais avassalador. Houve quem se queixasse da muralha de som que se constituiu e que tornava imperceptível quase tudo. Sentiu-se, de facto, uma reverberação que tornava macroscópicos apontamentos ligeiros de som e isso acabou por influir na degustação plena do concerto. Possível explicação: as ondas acústicas encontravam muito atrito, muitos espaços vazios entre a assistência e, como a sala é pequena, as ondas chocavam entre si e adensavam o barulho, o ruído na comunicação, já de si ruidosa, emanada da voz e instrumentos.

Uma espécie de hip-hop progressivo que tem tudo para defraudar os fundamentalistas do hip-hop ou do metal. É preciso alguma abertura para levar com um live sampling agressivo, aturar o berreiro de DJ Still para a agulha do gira-discos, beats ultracinéticos e uma poesia que não cabe nesse termo. Há quem ande a descobrir no som dos Dälek vestígios de My Bloody Valentine. Eles existem sim, mas apenas na exacta medida que os encontramos nos Jesu, novo projecto de Justin Broadrick (ex-Goldflesh e Techno Animal): uma nebulosa de som que se expande como gás tóxico, que calcina tudo à passagem. E a analogia acaba aqui, não vão os incautos do shoegaze calçar o sapato errado. Demolidor e inspirador, simultaneamente, assim foi Dälek.


Helder Gomes
hefgomes@gmail.com
24/05/2005