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Sic Alps / Nawadaha / Tó Trips
Cabaret Maxime, Lisboa
09/12/2007


Em primeira instância, a sinceridade e aspecto carnal da matinée sucedida no anterior domingo no Cabaret Maxime serve como auxiliar à diferenciação entre um domingo potencialmente suicida e anti-climático e um outro mais empolgante e generoso na sua oferta de três presenças musicais – a de Tó Trips, Nawadaha e Sic Alps. Quando a escolha coloca sobre os braços da balança a pasmaceira generalizada do domingo caseiro e a oportunidade de encontrar num Cabaret o escape perfeito ao non-sense natalício (ao qual se veio juntar o aparato da cimeira), a decisão torna-se instantaneamente fácil. Até porque valeria a pena aproveitar a infame tardinha de domingo para medir distância que vai do ócio e desleixo ao acidente e travessia sobre uma corda bamba, enquanto formas menosprezadas de criar música. À margem desses primeiros dois métodos, os nomes que desfilaram no Maxime frisam a ideia de que aquele teria sido apenas mais um domingo se os mesmos se tivessem limitado a atravessar rectamente a linha de giz marcada no chão. Acontece que, por vezes, descobre-se enorme satisfação a todos os desvios, passos em falso e malabarismos que podem assumir as letras situadas entre A a Z - balizas que, independentemente do que encaixem entre si, não deixam também de ser referências.

Encarregado de encetar as hostes por sua conta própria, Tó Trips, metade dos Dead Combo, sabe a que pontos cardeais apontar as suas viagens a bordo de uma guitarra e melhor ainda como se evadir desses à medida que sobrepõe continuadamente diferentes ciclos arrancados às cordas do instrumento e a outros objectos espanta-espíritos. Em jeito de narrativa western que avança de acordo com as voltas que o milhafre descreve no ar, Tó Trips vai encurtando os fôlegos entre as guitarras empilhadas e adensando a medida sónica da fogueira que suporta riffs, solos em desvario e a rebeldia de um som imitado a um animal da tundra. Esperam-se com a “pica” certa mais actuações neste registo.

Já dos Nawadaha, assombrado trio de gauleses estreantes em território nacional, espera-se que possam a vir a justificar um pouco mais o tempo que se dedica à perseguição do rasto que deixa a voz espiritual de Jasmin Januriek à medida que se dissipa na bruma onde também pairam as de Fursaxa, Nico e Diamanda Galás. Limitados, de início, ao piano ritualista e depois expandidos numa formação que incluía bateria e guitarra, os Nawadaha ensaiam contidamente uma feitiçaria que sai um pouco furada a cada vez que estagna no seu negrume.

A encerrar, os Sic Alps desenvencilharam-se convincentemente do fardo de serem apontados – nos press-releases que anunciavam o concerto - como a melhor banda rock do mundo. Serão certamente dos nomes actuais mais cativantes na fossilização do rock por amortecimento das suas características mais cinéticas, sem que isso impeça o vocalista e guitarrista Mike Donovan de disparar letalmente os riffs dos clássicos vagabundos “Semi-Streets” e “Surgeon and the Slave”, mas permitindo amplamente a que todo o ruído branco produzido pelos dois Alps seja, após a sua decomposição, apenas fuzz tornado lava e vozes que rasgam pano aos cancioneiros da garage adormecida e - imagine-se – country.

Entre acidentes algo cómicos, como o quebrar de uma corda de guitarra e o perceptível pavor – verificável à dupla - de que o som estivesse absurdamente distorcido, os polivalentes peões do underground de São Francisco servem de indício à noção de que regar sem grande preocupação o rock que se tem à flor da pele é o que basta, por vezes, para distinguir quem sabe de quem não sabe. Sem manterem qualquer necessidade de o exibirem, os Sic Alps são esfarrapadas e humanamente falíveis enciclopédias de tudo o que sabem.

Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
09/12/2007