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Out.Fest 2007
AMAC, Barreiro
16,17,23/06/2007


Texto de Nuno Catarino (dia 1 e 2) e Miguel Arsénio (dia 3)

De estrutura ampliada e com um cartaz aberto à internacionalização, a edição 2007 do barreirense Out.Fest alargou-se em termos abrangência estilística e de ambição. Originalmente ponto de encontro dos fazedores de outrock nacional, o evento transformou-se numa ampla mostra internacional de diversas músicas marginais. Na edição deste ano, para além dos portugueses Cúria, Variable Geometry Orchestra e CAVEIRA, quem se deslocou à margem sul do Tejo assistiu ainda a actuações de Wolf Eyes, Samara Lubelski e Aki Onda.

O duo português Tsuki abriu o Out.Fest 2007 sobrepondo electrónicas e saxofone (ou percussões exóticas). Construindo uma música pela adição de camadas, a música aqui criada resulta eminentemente ambiental, paisagística. Se o cruzamento das gravações de campo com elementos electrónicos (Ricardo Costa) começa por ser interessante, a adição do saxofone (José Lencastre) com os seus fraseados soltos mas pouco maleáveis transforma esta música num bilhete postal pouco engenhoso, uma fórmula que acaba por cansar ao fim de algum tempo. Depois da actuação morna dos Tsuki, a VGO de Ernesto Rodrigues encerrou em grande nível o primeiro dia do Out.Fest 07. Enchendo o palco do Auditório Municipal com quase trinta músicos, a Variable Geometry Orchestra mostrou uma notória evolução relativamente às suas primeiras actuações. Mesmo com um número imenso de músicos a trabalhar em simultâneo, Ernesto já se conseguiu impor como maestro e consegue controlar melhor a massa sonora gerada pelo grupo. Já não se trata propriamente de “caos sonoro”, a música aqui produzida – mescla de instrumentação acústica e material electrónico – reproduz algumas características individuais dos diversos músicos intervenientes (Sei Miguel, Rafael Toral, João Pedro Viegas, António Chaparreiro, Nuno Torres, Adriana Sá, Abdul Moimême, o próprio Ernesto Rodrigues, etc.) e consegue ser, em simultâneo, um veículo único de unidade sonora plena de energia.

O segundo dia do festival foi aquele que acolheu mais público - adoradores do metal e fãs do noise juntaram-se para o dia mais pesado do Out.Fest. A noite abriu com o concerto dos Tropa Macaca, duo de Santo Tirso que utiliza maquinaria (Joana da Conceição) e guitarra (André Abel) para criar uma música que utiliza a electrónica de forma progressiva, intersectando-a com ruído. Lembrando um kraut avançado, passando por um quase-techno até à desconstrução dos Black Dice, a Tropa teve uma actuação interessante. Seguiram-se os espanhóis Orthodox que apresentaram o seu doom metal, pesado e arrastado, que agradou à maioria do público que fez headbanging durante toda a actuação. Não pudemos confirmar completamente as tais influências maiores (Black Sabbath era evidente, John Coltrane nem por isso), mas nessa noite do Barreiro assistiu-se a um portento de intensidade. E a noite continuou com ainda mais intensidade pelos muito aguardados Wolf Eyes. O trio americano apresentou o seu noise rock poderoso, assente em electrónica, guitarra, saxofone e muita distorção e conquistou por completo o público do Barreiro (e não só). No final o público foi inesperadamente convidado a subir ao palco para assistir aos últimos temas ao lado da banda. Confirmado as expectativas, foi um espectáculo de devastação sonora memorável, ficando como um dos momentos maiores da edição do Out.Fest 2007.

O terceiro dia do Out.Fest abriu com Manuel Gião. Diz-se sobre a esquizofrenia que uma das suas mais graves manifestações sucede-se quando o paciente adquire a noção de que não tem direito à privacidade do seu pensamento, pois o mesmo é passível de ser interceptado por todos à sua volta. A generosidade do japonês Aki Onda, nome de relevo no cartaz do Out Fest, mede-se também pela submissão a que sujeita voluntariamente as memórias pessoais que foi arquivando em cassete para tratamento posterior na série Cassete Memories e em prestações tão assombrosas como aquela que presenciou o Barreiro na anterior sexta-feira. Aki Onda vai distribuindo as várias tapes por diferentes decks num jogo de reminiscências que alterna entre o mais plácido cantar dos pássaros e celebrações musicais captadas num qualquer lugar incerto, entre formas mais próximas do drone formado por acumulação e outros sons de ritmo mais estável (nunca previsível) – como um que soa a goteira e a que, a certa altura, é imposta lentidão, porque também a memória se distorce quando revisitada. Sobra uma memorável passagem pelo Out Fest daquele que será dos grandes pulmões criativos oriundos do Japão experimental, além de iluminado crítico de música com um dom excepcional para apreciações lúcidas de imenso valor.

Valor que não faltou também aos Curia, que têm vindo a actuar desde Março do presente ano com a formação de quarteto composta por nomes que, por si só, já representam sinónimo de desbravar de terreno no âmbito da música experimental portuguesa: Manuel Mota (guitarra), Margarida Garcia (guitarra tocada com arco), David Maranha (empregue a um órgão Hammond com pedais e efeitos) e Afonso Simões (diante de uma bateria que, nas suas mãos, assume funcionalidades muito além das esperadas). Os Curia absorveram a atenção (e escassa luz) do Auditório ao longo de duas peças reveladoras sua travessia de uma frequência que recua até à discrição do lower case para que mais espaço sobre ao cruzamento entre as ideias efervescentes que vão surgindo a partir das mãos mais irrequietas de Manuel Mota (que chega a dispensar o braço da guitarra) e de Afonso Simões (que explora a toda a escala a superfície dos metais da bateria). O concerto dos Curia quase se assemelhou a um processo de florescimento de fungos presenciado num quarto-escuro. Assentaram que nem uma luva ao Out Fest.

Já algo deslocada surgiu Samara Lubelski e as suas canções cobertas de vegetação silvestre. Assim aconteceu talvez porque o carácter out da senhora está mais presente no seu trabalho como produtora que nos discos de canções encarregados à óptima gestão da Social Registry (casa dos Psychic Ills e Gang Gang Dance). A meia-hora que veio a conhecer o Auditório rondou um registo morno que tinha nos momentos mais inspirados dos músicos acompanhantes – integrantes do colectivo germânico Metabolismus – os pólos determinantes no abanão (comedido e interno) de que necessitaram algumas passagens para não se tornarem maçadoras. A derradeira música apresentada descobriu sintonia aos três em palco e expandiu-se quando assim era desejável. A restante prestação deixou a vaga ideia de que Samara Lubelski podia resultar melhor noutro enquadramento. Na noite de sábado CAVEIRA e Josué O Salvador encerraram o festival.