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Yo La Tengo
Aula Magna, Lisboa
03/12/2006


Além de ter roçado com frequência a magia própria das ocasiões “maiores que a vida”, o concerto dos Yo La Tengo na Aula Magna serviu para provar que, afinal, I’m not Afraid of You and I Will Beat Your Ass é um conceito, além do álbum que proporcionou o mote à digressão que teve como última paragem Lisboa. Conceito esse que serve essencialmente para despertar a genica às pequenas grandes canções quando estas se encontram perante a ameaça dos imponentes pilares “Pass the Hatchet, I Think I’m Goodkind” e “The Story of Yo La Tango” (ambas presentes no último disco e ampliadas além da sua estatura épica nessa noite). Assim se sucedeu no auditório universitário – proporcionou-se a oportunidade de simpáticos e à partida inofensivos Davids, como “Mr. Tough” e “Beanbag Chair”, colocarem em risco a profundidade do impacto que infligem os pilares anteriormente referidos. Sem que seja verificável qualquer desnível à entrega dos Yo La Tengo durante o tempo em palco, torna-se mais difícil descobrir se venceram a noite os minúsculos ou os gigantes. O conceito I’m not Afraid of You... passa a ser sólido e exaustivo manifesto em defesa da ideia de que o tamanho não importa realmente, se o empenho não lhe for proporcional.

Mas nem só de teorias vivem os três fantásticos de Hoboken. Durante quase duas horas e meia, celebrou-se a música que se descobre entre os despojos acumulados ao longo de uma vida, a que se recupera aleatoriamente à desarrumação visível na contra-capa do disco do título intimidador. Ao serviço incondicional disso, um inspiradíssimo Ira Kaplan inflama de electricidade o mantra surf-rock de “Pass the Hatchet, I Think I’m Goodkind”, que enche a sala antes mesmo de assentarem os pêlos elevados pelo premonitório charme outonal de “Our Way to Fall”, que constitui, muito provavelmente, a mais subtil forma dos Yo La Tengo expressarem que estavam dispostas a viver apaixonado affair com todos os presentes na noite de Domingo.

O affair haveria de conhecer pontos climáticos – se bem que algo perturbantes – no gospel apocalíptico de “Nuclear War”, detonado em encore com o baixista James a juntar-se à precursão e coros de êxtase irónico, e numa “Watch Out for Me Ronnie”, que exibe o aspecto selvagem de música evadida de garagem preenchida por frenesim. Os decibéis atingidos na segunda chegaram a ferir uns quantos ouvidos. Mais susceptíveis se encontrariam esses quando tais momentos vão alternando com a pacificação algodão-doce de “I Feel Like Going Home” (contextualmente lógica nessa noite) e “Autumn Sweater”.

Os Yo La Tengo, tal como Cat Power no dia seguinte do Festival Radar, deparam-se actualmente com o desafio que representa ter de desenvolver estratégias que os livrem da fossilização que persegue os clássicos. Convenhamos, as duas instituições da Matador vestem já a pele a novos clássicos indie (repare-se, por exemplo, no uso atribuído ao sopro nos mais recentes discos de ambos). Sendo que os Yo La Tengo se afoitam já ao suicídio verificável à tentativa de assassinar os congéneres clássicos: as versões de “I Wanna Destroy You” dos Soft Boys e “Little Honda” dos Beach Boys são homicídios perfeitos que o trio cede generosamente à Aula Magna. Perto do final, instala-se um ambiente natalício com a rendição do acelerado “Rock n’ Roll Santa” e outros representantes mais discretos daquele sentimento que canonizou na perfeição Vince Guaraldi com os discos elaborados para a série Charlie Brown. Perante isto, importa colocar a questão: haverá época do ano a que sinta tanto a ambição utópica de unir os mais privilegiados aos carenciados? Muito mais verdadeira é a postura de uns Yo La Tengo que, por uma noite, colocam tudo e todos em pé de igualdade e cumprem um dos melhores concertos a que assistiu Portugal este ano.

Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
03/12/2006