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Sepultura: de volta às raízes





Houve um tempo em que os Sepultura eram considerados uma das melhores bandas do mundo (se não mesmo a melhor, em certos círculos). A culpa foi de Arise, álbum que editaram em 1991 e que num instante se tornou num clássico do metal - violência thrash aliada ao grito imortal da revolução, um ano antes dos Rage Against The Machine aperfeiçoarem essa fórmula e de a empacotarem num cocktail mais apelativo às grandes massas, mesmo que os próprios não tivessem isso em mente. Não podemos acusar os Sepultura do mesmo. Ainda que os RaTM fossem, de certa forma, o som de um gueto eléctrico pronto a disparar, não deixavam de ser cidadãos do inimigo número um dos povos pobres, por oposição à favela dos Sepultura, muito mais verdadeira; um tema como "Killing In The Name" poderia ter sido escrito por um qualquer adolescente revoltado de esquerda, mas "Manifest", de Chaos A.D., só poderia ter saído da mente de um brasileiro...

O propósito disto não é discutir quem se preocupa mais com a revolução, se os RaTM ou os Sepultura. É mais mostrar que a linguagem destes últimos adquire um significado único mesmo dentro dessa música de intervenção (que o é), um significado construído a partir das suas vivências, dentro do meio em que estavam inseridos - o Brasil dos anos 80 e 90, mal refeito de uma ditadura militar. Clamar pela revolução depois de ter sofrido na pele o totalitarismo não é exactamente o mesmo que fazê-lo numa sociedade que, para todos os efeitos, permite o pensamento livre. E há que tê-lo em conta ao falar sobre a importância dos Sepultura e da sua third world posse, mesmo antes de pegar na revolução que os Sepultura desencadearam na sua própria sonoridade, com Roots, em 1996.

Editado cinco anos após Arise, Roots é grosso modo o álbum real dos Sepultura - não nega as suas origens metaleiras, mas abraça toda a música e cultura do Brasil, uma cultura tapada pela televisão salvo em caso de desgraça. É um álbum que espelha verdadeiramente as suas raízes, orgulhosa e respeitosamente; não o faz pelo exotismo ou pela ganância da diferença. Raízes essas que vão da cultura indígena ao próprio metal, que sofre aqui uma reformulação total, abrindo caminho tanto à parvoeira do nu metal como a tendências mais experimentais, muito antes de se falar em pós-metal ou quejandos. Já para não dizer que foi uma pedrada no charco de um heavy metal que por esta altura caminhava a passos largos para o abismo do showbusiness, com uns Metallica sem cabelo e um Marilyn Manson a tentar ser Bowie a sobrecarregar o género. O seu maior triunfo, quiçá, será ter juntado num mesmo CD Mike Patton e o povo Xavante...

Se a faixa de abertura, "Roots Bloody Roots", ainda se encontra demasiado colada à vida passada dos Sepultura - e também é por isso que continua a ser presenta obrigatória nos concertos ao vivo destes "novos" Sepultura, mil vezes menos interessantes e cujas digressões só têm servido para alimentar impulsos mais ou menos nostálgicos -, é logo ao segundo tema ("Attitude") que começamos a entrar num mundo até então desconhecido; o berimbau inicial dando lugar ao peso de uma electricidade em registo grave, a garganta trémula que nos diz - e ao mesmo tempo impede-nos - de sobreviver na selva, que nunca terá sido tão negra como em Roots. Se os Killing Joke eram o som da terra a vomitar, Roots é a própria terra, anárquica sem caos, defendendo-se de uma urbe capitalista que a pretende queimar.

Contudo, nenhum dos temas presentes em Roots mostra tão bem o quanto os Sepultura evoluíram (ou se viram forçados a evoluir, para não estagnar) como "Ratamahatta", uma espécie de rap indígena onde a percussão é tudo - percussão essa que é, igualmente, o ponto mais forte do álbum. Imaginem que estas tribos combatiam os horrores do colonialismo não com arco e flecha mas com metralhadoras, e poderão ter uma ideia de "Ratamahatta" e do seu significado... E para que o ponto não se perdesse nesses quatro minutos e trinta de transe xamânico, logo a seguir "Breed Apart" arranca com o mesmo espírito que povoa Roots (que se transforma por completo perto do final, numa procura maníaca pelo ritmo). Todas as canções interligadas, como parágrafos de um verdadeiro manifesto. Seja pelas supracitadas, pelo registo operático e trip-hop de "Lookaway" ou pela magia tribal de "Itsári" e "Ambush", Roots é um álbum que resistirá fortemente, tal como o continua a fazer, ao teste do tempo - tanto que o próprio Max Cavalera anunciou para este ano uma digressão em conjunto com o seu irmão e em torno do disco que, mais que Arise ou Chaos A.D., é o som puro dos Sepultura, dos seus gostos, do seu sangue, da sua ambição. O seu pior foi ter potenciado algo tão insosso como os Soulfly; o seu melhor foi ter sido o som de um terceiro mundo disposto a pegar nas armas.


Paulo Cecílio
pauloandrececilio@gmail.com
20/02/2016