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Canções de Verão




Fotografias de Angela Costa

André Gomes
"Sun"
Caribou

O problema no mais recente disco de Daniel Victor Snaith (lembram-se de Manitoba?) é escolher a melhor das canções, algo tão difícil como apontar o bikini mais certeiro ao pé de uma piscina de Verão. Mas “Sun”, até pelo seu título, é uma das mais fortes candidatas num álbum que reúne todas as condições para ser um dos melhores discos de 2010. Tudo bate certo aqui: a melodia trémula que arranca as operações e nunca mais desaparece, a voz que repete a palavra “sun” ao longe e ao perto, a colheita de batidas que vão encontrando espaço e força ao longo de toda a canção. Daniel Victor Snaith é mestre na gestão de ambiências e na criação de um espaço de profunda efervescência estética. Para trazer por casa ou levar a dançar na mais entusiasmante das pistas de dança, “Sun” é um clássico de Verão; tão ou mais refrescante do que um mergulho numa piscina em dias de calor tórrido.

"Me & You"
She & Him

Para recuperar das emoções fortes da época, do cansaço e do ruído do dia-a-dia, nada como a voz de Zooey Deschanel e a guitarra de M. Ward, pouco mais do que isso, em profunda sintonia, naquele que é um dos momentos mais espantosos de um belo disco revivalista. “Me & You” não tem muitos segredos e no entanto tem toda a magia: melífluo até ao tutano, esconde apenas umas vozes que pertencem ao domínio dos sonhos e uma guitarra a fazer horas extraordinárias na sessão de gravação que carrega para a canção uma desarrumação saudável no meio de tanta perfeição. Zooey e Ward, sentados numa árvore, apaixonados pela canção americana parece um sonho mas é verdade. Já falamos do slide guitar? Isso dava para mais uma data de linhas mas este texto tem os seus limites e não queremos mesmo aborrecer ninguém. É só seguir as placas que dizem “doçura”.

"All to All"
Broken Social Scene

“All to All” não é uma canção qualquer. Não é mesmo. É uma daquelas delícias electrónicas que dão vontade de erigir momentos às máquinas e encetar relacionamentos de longo termo com as mesmas. É uma das canções que nos lembraram, no mais recente Forgiveness Rock Record, que os Broken Social Scene, são ainda patrões na altura de colher melodias do good old indie pop. Não vale sequer a pena tentar descrever aquela voz de sonho e quimera que diz, baixinho, “Call of forgiveness / I'm like the beat of the hurt / I'm not the only one / You tried to save when you fell out”. Não vale a pena sequer tentar explicar a forma absurdamente encantadora como voz e máquina se encontram num dueto de titãs, retirando daí apenas beleza. Descrever “All to All” é um perfeito desperdício de tempo; mais vale ouvi-la de uma vez por todas. A propósito, com a vossa licença.



Bruno Silva
"Coma Cat"
Tensnake

Sem que se deixe desvanecer aquele aroma a creme hidratante e fake tan de solário da balearic beat nascida em Ibiza circa 1982, a reapropriação desse imaginário tem vindo a conhecer caminhos bem mais diversificados do que a mera dança suada da classe média alta. O celebrado Yearbook 1 dos Studio poderá ter sido a faceta mais visível das baleares, numa altura em que se falava já de um Ibiza revival independente das sofríveis compilações Café Del Mar. Eventualmente, toda essa proto-tendência se veio a dissipar, com passagem por pérolas como as remisturas dos Aeroplane (“We Can't Fly” também poderia estar aqui) ou as bizarrias maximais dos Mungolian Jet Set e uma descendência discreta. Com atributos humildes, “Coma Cat” de Tensnake agarra a dança pelos cornos (ou pelas ancas). Consegue a estabilidade necessária num limbo entre uma saudável seriedade e o apelo cheesy capaz de arrastar, sem grande esforço, tanto o mulherio mais lascivo como o público da Smalltown Supersound. Rejeitando o carácter arty muito pós-moderno, em prol de uma estrutura formal 4/4 tão insinuante quanto alienígena no seu hedonismo. Tão simples quanto o facto de ser apenas uma linha de baixo absolutamente infecciosa que carrega todo o tema, para reluzir de modo mais estival que tudo o resto com a entrada do xilofone sintetizado mui caribe. Malha obrigatória em qualquer festa, sem que o “bom gosto” tenha de ser uma imposição. Ou seja, a verdadeira silly season.

"Midnight Affair"
Rudimental ft. Aadiyam & Shantie

Dada a extrema proficuidade da Uk Funky ao longo de 2010, seria inevitável a presença do género em qualquer lista de “canções de e para o Verão” com o mínimo de bom senso. A opção por “Midnight Affair” poderá até nem ser a mais óbvia, tendo em conta a hotness de algo como “Kiss Me There” ou “Got That Something”, mas constitui, sem grande dúvida, aquele momento que melhor evoca o ambiente promíscuo tão propício a noites quentes. Como se depreende, “Midnight Affair” é marcadamente nocturno. É também sobre toda a tensão que o flirt pré-foda acarreta. Elevada a níveis de extrema sensualidade por via de um sintetizador dorsal que, enredado em torno dos polirritmos rasteiros, consegue ser uma de elegância tão discreta quanto impositiva. Contrariamente à tendência one night stand mais cândida de um clássico como a “Do You Mind”, “Midnight Affair” rejeita qualquer tipo de empatia emocional. É foda nascida pela necessidade de quem não tem nada mais interessante para fazer. A misteriosa melodia da parte central é o caminho necessário até à cama, com a cidade em volta como espectador ausente. Uma certa alienação tão em consonância com o hedonismo narcótico. Ainda assim, existe vida fora dessas quatro paredes, e “Midnight Affair” não deixa de soar estranhamente vouyerística na sua apatia enevoada. o que a torna perfeita para o drive by citadino em câmara lenta.

"Endless Summer"
Fennesz

O Verão enquanto nostalgia por definição. Com a homenagem óbvia ao legado dos Beach Boys a servir de premissa para as memórias difusas de um Verão que, afinal de contas, não regressa. Remete-se aos recantos recônditos do cérebro em formas voláteis permeadas pelo ruído da comunicação. Permanece um apaziguamento tortuoso. Dias felizes com o sol de chapa a virarem melancolia crepuscular. O tempo enquanto catalisador de um “sentimento” que invariavelmente se perde, para dar lugar a uma existência confinada às polaroids carcomidas. O “Endless Summer” que é uma ilusão. Sem recorrer à apropriação da nostalgia alheia da infância característica dos Boards of Canada, o austríaco Christian Fennesz conseguiu, no seu terceiro álbum, reconstruir de modo igualmente magnânimo o granulado Super 8 para a electrónica pós-IDM. Subjacente à ideia de ruído enquanto matéria moldável para a melodia, reconverteu-o em algo mais sonhador com ecos de Loveless em fundo. Mais do que a exploração do onirismo ou do psicadelismo, “Endless Summer” habita no cérebro enquanto daydream consciente. Mesmo que a melodia central ameace constantemente perder-se no fluxo de informação, existe sempre algo que a resgata como que a relembrar que, por vezes, certas coisas não podem ser revividas. E que a memória de um Verão poderá ser bem mais preciosa do que o próprio momento.



Miguel Arsénio
"Warm Slime"
Thee Oh Sees

Desde que começou com o nome O.C.S., duo votado a canções sonâmbulas, e até alcançar um estado de plena euforia, John Dwyer habituou-nos a entender os seus Thee Oh Sees como a banda que só existia num próximo disco caso isso implicasse uma ligeira mudança. Isto quando o inverso acontecia nos Coachwhips, a anterior banda de John Dwyer, que repetia a ideia de cegueira rock e ponteiro no vermelho até que isso parecesse uma tradição alucinada. Ainda que uma ou outra longa jam indiciasse a expansividade dos Oh Sees, nada nos preparava para a cavalgada de 13 minutos e meio que é “Warm Slime”, a faixa que abre o mais recente álbum com o mesmo nome. A justificação oferecida em entrevistas aponta para o gosto em ouvir as músicas mais longas dos Can. O resultado, esse, repete, em coro, um conveniente All we need is the summer time até que o rock, depois de desaparecer e reaparecer, fique para assistir ao amanhecer no lendário Festival de Monterey. E que bonito é esse amanhecer.

"Gold Soundz"
Pavement

No seu melhor registo de brainstorm verbal que tudo arrasta, Stephen Malkmus passeia a voz pelas diferenças sociais e pelo absurdo habitual até embater naquele que será um dos pares de versos mais sensuais na carreira dos Pavement:”So drunk in the August sun / and you’re the kind of girl I like”. E são esses os versos que bastam para que “Gold Soundz” meta o Verão no bolso e seja o tema perfeito para escutar no carro quando o volante já derrete. Tal como acontece no restante Crooked Rain Crooked Rain, os Pavement de “Gold Soundz” brincam com as transições entre o suave e o ríspido, como quem insinua, com alguma ironia, que podiam também colher os ganhos da febre grunge se lhes apetecesse. O vídeo mostra os Pavement com trajes de Pai Natal a alvejar frangos com setas, e confirma que ninguém fica a saber mais sobre o fundamento destas músicas observando as fantasias visuais da banda. Sabemos também que o mundo continua a ser um lugar perfeito quando os Pavement terminam o vídeo de “Gold Soundz” a comer bolachas com leite e a escorregar na relva.

"The Way I Feel"
Adrian Gurvitz

Quando, em 1982, Adrian Gurvitz arrecadou a simpatia das rádios com o fabuloso êxito “Classic”, poucos adivinhariam que aquele homem amargurado, que cantava sobre o amor como se fosse a droga, tinha produzido (com a ajuda do irmão Paul) um incrível álbum de disco music branca apenas alguns anos antes. A segunda surpresa reservada por Sweet Vendetta, o tal álbum, será a sua capacidade de parecer perfeitamente dançável e lúcido numa altura (1979) em que a disco já transparecia os horrores de um corpo apodrecido. “The Way I Feel”, peça chave de Sweet Vendetta e single de capa ousada, tem tudo para sair do armário na estação do calor: o falsete (pobre Mika), um ritmo quase indecente, os arranjos de cordas (assinados pelo especialista Marty Paich) e as congas certas para quebrar o gelo que resta. Perto do final, o solo de guitarra fica em suspenso e é assim que uma música obriga a escutas repetidas. A mesma sorte não acompanhou Sweet Vendetta, que foi recebido com relativa indiferença no seu tempo e só ultimamente tem vindo a obter algum culto (e a inevitável subida de preços da sua linda edição japonesa). Enquanto parte que melhor representa o todo, “The Way I Feel” será a prova de como uma excelente canção nunca acumula o pó do foleiro.



Nuno Catarino
"King of the Beach"
Wavves

O Verão de 2010 vai ser dominado por dois discos: King of the Beach do alucinado Nathan “Wavves” Williams e Crazy for You da sua namorada Bethany “Best Coast” Cosentino. Eles são o casal do Verão e dão-nos os discos mais solarengos, festivos e apaixonados (teen style) da silly season. Provavelmente o disco da moça irá sobreviver melhor à estação, mas o destaque terá de ir para o elemento masculino do casal, pela primeira faixa do disco homónimo, que abre a dizer "let the sun burn my eyes, let it burn my back”. A guitarra é alegre e a canção conquista-nos pela sua simplicidade orelhuda, para culminar no refrão óbvio. Nathan deixou o aborrecimento e o skate, agora está à sombra de palmeiras, pegou na prancha de surf e conquistou um novo trono. O rei vai de calções, Nathan Williams é o rei da praia.

"Do you know the way to San Jose"
Jim O'Rourke
 

O melhor disco de homenagem/versões do ano é da autoria do genial Jim O'Rourke. E o homenageado é o genial Burt Bacharach. O resultado, All Kinds of People ~love Burt Bacharach~, não é genial, mas é previsivelmente muito bom, e o mais difícil é escolher apenas um tema, dada a homogeneidade qualitativa do álbum. A escolha caiu sobre “Do you know the way to San Jose”, menos óbvia mas com a eficiência habitual. A percussão irrequieta impõe uma toada algo nervosa, contraditória com o piano, que agarra o leme com intervenções seguras e espaçadas. E o trompete voa nos espaços livres, amplificando o eco da dimensão melancólica da melodia. A voz (doce) é da japonesa Kahimi Karie, cantora que já colaborou com gente como Cornelius ou Otomo Yoshihide, “a voz de elevador num mundo perfeitamente sensual” (© Miguel Arsénio), e o resultado é absolutamente perfeito, ideal para acompanhar o dry martini de fim de tarde. Vou ali pedir outro que este tinha pouco gin.

"Benfica"
Panda Bear

Ainda não saiu oficialmente, mas já foi tocada ao vivo várias vezes e já anda pelo youtube. É apenas um dos temas que compõe o álbum mais aguardado do ano - Tomboy, que só sai em Setembro - mas tem o melhor título do ano (homenagem ao campeão mais espectacular das últimas décadas) e não só. “Benfica” arranca com um sample de cânticos de uma claque de futebol (serão os No Name Boys, claro), para depois encontrar a voz de Noah Lennox, seguido de efeitos electrónicos alucionatórios. E então andamos às voltas da melodia vocal, que assume uma forma épica, que evoca uma quase-religiosidade (a imortalizar a narrativa heróica da época 2009/10, a sublinhar o génio de Javier Saviola, Pablo Aimar, David Luiz e DiMaria). Depois do imbatível 10/10 que foi Person Pitch, Panda Bear volta a voar a grande altura, aquecendo a pré-época. O urso panda é a nova águia Vitória.



Nuno Leal
"Nazi Beach Party"
The Bird Names

Chicago gela no Inverno mas ferve no Verão e toda a gente corre para a sua praia de areia dourada onde o mar é uma lagoa, literalmente. É que a água calma não tem fim no horizonte mas não é mar, é um dos Grandes Lagos, o Michigan. Logo molham os pés em água doce, doçura que refresca e abunda na pop desconcertante dos “Chicaguenses” The Bird Names. Open Relationship é de 2007 e traz esta estranhíssima ode às lutas por um lugar no areal que se deflagram no Verão à pinha. Melodicamente paralela a algumas coisas dos Animal Collective, apesar disso, este colectivo que também gosta de animais mas mais nomes de passarinhos, perde-se muito mais do que os AC no freak out folk bem humorado de títulos estranhos. É quase uma onda revivalista dos majestosos Holy Modal Rounders e no Verão é de ondas revivalistas destas que a malta gosta.

"I Love Her All The Time"
Camper Van Beethoven

No Verão (pelo menos para alguns malucos) apetece é ir para a floresta de sequóias com 100 metros de altura e 5 metros de largura fazer churrascos à sombra de gigantes com umas malucas”red neck”, filhas de lenhadores e mestras em pés-de-dança country. No seu mítico II de final de oitentas, a rapaziada tresloucada do pão-de-forma Beethoven, a pensar nesse nicho de população veraneante, decidiu desmontar o clássico tema dos Sonic Youth ainda imberbes de 85 e voltar a montá-lo como clássico de amores de Verão para pretendentes de barba rija. É lindo ouvir um tema dos Sonic Youth e rir do princípio ao fim. E não é a rir que se passa bem o Verão?

"First Hand Experience in Second Hand Love"
Giorgio Moroder

Não é o gajo do anúncio da TMN Mosh, não é o Gunther, mas parece realmente um Zezé Camarinha no seu bigode 70’s com ar de “come on baby”. Mas Giorgio, rei do obscuro “italo-disco”, génio dos primórdios do que é a electrónica de dança dos dias de hoje, sempre revisitado com mais ou menos respeito (Lindstrom que o diga), Giorgio dizia (adoro dizer enquanto escrevo “Gi-or-gio), é um baluarte do Verão. Não só porque compôs o melhor tema de sempre da Donna Summer (lá está!), o hino turbo-estupefaciente “I Feel Love”, mas porque ao ouvir este tema e todos os outros de From Here to Eternity de 1977 (1977!), surge de imediato a pergunta “o que seria de Ibiza sem este maluco p’rá-frentex?“. Kraftwerk com Mediterrâneo, sexo entre robots latinos de bigode e bifas de férias, com um toque de Pet Shop Boys 8 anos antes deles próprios começarem, obrigado Giorgio por este puro visionarismo veraneante.



Paulo Cecílio
"Madrugada Eterna"
The KLF

Antes de se despedirem da indústria musical com uma acção terrorista transmitida em directo para todo o mundo (Brit Awards, 1992) e de influenciarem coisas como os Scooter (o mais guilty dos pleasures), Bill Drummond e Jimmy Cauty divertiam-se a inventar novos epítetos para a música ambiente; Chill Out, obra-maestra do duo (a par da linha de baixo de "3 a.m. Eternal"), não é somente um álbum para o verão, mas para todos os verões. Das catorze faixas de um disco que é melhor servido em repeat destaca-se "Madrugada Eterna", canção para, como o título indica, se ouvir nos minutos pré-aurora e deliciarmo-nos com aquele slide de guitarra; o mundo é o luar visto da praia.

"[rhubarb]"
James Devane

James Devane é um completo desconhecido. Não um completo desconhecido no sentido de que "só a malta alternativa é que o conhece". Não. Contam-se pelos dedos os melómanos/internautas que terão acedido ao seu site ou ao seu myspace e ouvido as suas canções. Do seu gosto pela guitarra saem pérolas como [rhubarb], original de Aphex Twin (!) - ou, como transformar um sintetizador num profundo lamento acústico, que nos atinge o rosto como a maresia. Para o efeito ser maior, sugere-se este vídeo; aqueles somos nós e os nossos amigos, quando a morte não existia. O verão faz-se também de tristezas.

"Never Follow Suit"
The Radio Dept.

O terceiro disco dos Radio Dept. não merece elogios. Quem pensam eles que são para fazerem um álbum pop tão enorme? "Never Follow Suit", para além de simples canção de amor, é um aceno tanto ao twee dos oitentas como à fantástica produção dos Saint Etienne de Foxbase Alpha. Se há canções que salvam este verão sem precisarem de aderir ao rótulo hypnagógico esta é uma delas - os Radio Dept. nem precisam de ser espanhóis para soarem tão baleares. E depois existe, na voz suave de Johan Duncanson, todo um lado de bad boy: "Every time I get on a train / Almost everyday I see my name, I'll say / Yeah y'know I was there, I bombed it". Há melhor que isto?



Pedro Rios
"Endless Hapiness"
Black Dice

Esqueça-se por momentos o areal sem um metro quadrado livre para meter a toalha. Esse é o Verão que não interessa. Há um outro que podem descobrir em passeatas já depois da oito da noite junto ao mar. E é esse que “Endless Hapiness”, magnífico momento do sublime álbum Beaches & Canyons, evoca. Há algo quase líquido na forma como os Black Dice põe uma flauta freak a pairar sobre um cozinhado de electrónica e sininhos, como o movimento de ondas se mistura com esta música. Depois de um momento de destruição percussiva, ficam apenas as ondas a quebrar na areia. Puro esvaziamento mental e contemplação da beleza. O Verão que interessa.

"Seadrum"
Boredoms
 

Faz parelha com o monumento “House of sun (o respirar de uma tambura e guitarras aos círculos em devoção à luz solar em imersão psicadélica durante 20 minutos). Os japoneses atiram-se aqui ao seu lado mais krautrock, mas em doses monstruosas, como se os Neu! estivessem especialmente dopados e decidissem contratar uns bateristas extra. Não sabemos como fizeram isto, mas “Seadrum” parece ter dezenas de baterias em simultâneo à bulha com pianos frenéticos e a voz de Yoshimi. Algures no momento há tablas e percussão em festim tropical. Não escolhemos “Seadrum” por acaso: os Boredoms gravaram as baterias na areia junto ao mar, e tocaram incessantemente até à maré encher e começar a molhar as baterias; com a maré cheia, gravaram as baterias debaixo de água.

"Parasailing"
Ducktails

Qualquer canção de Matt Mondaline (ou dos seus Real Estate) podia estar aqui. Por que não “Parasailing”? Um loop de teclado ao fundo dá o tiro de partido para um tema que se desenrola sem pressas, como uma tarde de Verão. Uma guitarra cheia de flanger brinca com sintetizadores, sem especial ambição, mas com efeitos pacificadores do lado do ouvinte. Parece kosmische musik feita por um miúdo sem qualquer noção da história da música, apenas interessado no som. A gravação manhosa dá um charme extra a esta música.



Rafael Santos
" Kunst or Ars"
Meanderthals

Sagrada união entre Londres e Oslo, entre os Idjut Boys e Rune Lindbaek. Desire Lines, o belíssimo álbum que merecia em si ser uma referência sonora para este ou qualquer outro Verão, foi editado no ano passado, mas inexplicavelmente passou despercebido a muito boa gente. Daí a pertinência na recuperação destes temas numa tabela de músicas dedicadas ao Verão. Por ser constantemente quente, espaçoso, envolvente e harmonioso, todos estes tons foram desenhados para incitar a preguiça à beira-mar ou no campo (a capacidade de sugestão é constante). Logo na primeira escuta deste disco percebe-se a entrega espiritual do colectivo quando decidiu baralhar as correntes rítmicas vindas de África com as steel-band caribenhas (de Trinidade e Tobago) sobre a batuta da pop domingueira e o disco-sound balearico. Talvez por isso respira-se uma liberdade nada confrangedora quando se fala de música propositadamente bonita. Para destaque fica o amoroso "Kunst or Ars", o prologo desta viagem imaginaria até às mais idílicas latitudes tropicais. Para ouvir deitado e de papo para o ar numa tarde quente e luminosa depois de uma longa sardinhada regada com o mais fresco vinho verde minhoto.

"O’l Dirty Vinyl"
Moody

Nunca é tarde para descobrir a música de Kenny Dixon Jr. Nunca. Especialmente para apreciar as suas múltiplas e congénitas personalidades que nunca o limitam criativamente. É um tipo discreto mas de que toda gente fala quando edita qualquer coisa. Como Moody (é a face mais recente) tem se dedicado a fazer mini-álbuns onde expande a sua grande aura pela escrita explícita e repleta de vocalizações sensuais. Desde Det.riot '67 (2009) que Dixon recorre às suas cordas vocais para veicular a sua mensagem e isso volta a acontecer no novo disco em dois momentos distintos. Mas "O’l Dirty Vinyl", retirado do mini-álbum com o mesmo nome editado recentemente, não é um deles. "O’l Dirty Vinyl (U Used To Know)" é aquele exemplo de house vocal e festivo (interpretado no feminino lá do fundo da garagem) que sabe sempre bem no Verão; definitivamente não é vocalizado por Dixon, mas também tanto faz porque a soul lasciva da menina gorda jorra-se no groove sujo e no baixo funk delirante sempre com aquela invulgar dinâmica e frescura. Arranje-se a piscina, porque música para fazer a festa da tarde está aqui.

"You Know How I Feel"
Kyle Hall

Este jovem de 18 anos é considerado por muitos a nova promessa da house e do techno da Detroit moderna. E debruçando-nos sobre a curta mas interessante discografia é difícil não se concluir que Kyle Hall tem mesmo um invulgar talento, seja na manipulação dos velhos padrões das escolas de Chicago e Detroit, seja na forma como os cruza com maneirismos nascidos com as tendências mais recentes. E é revigorante descobrir que a versatilidade de Hall é também abraçada pela exigente colectividade da Hyperdub. "You Know How I Feel" é o lado b de um interessante EP que Hall editou pela editora de Kode 9. O som é caloroso, bem intencionado, assente essencialmente nas coordenadas de um dubstep (cada vez menos dubstep) com uma aragem melódica abafadiça que até transforma a irritante sonoridade 8 bit num momento de invulgar aprazibilidade. Para indagar sozinho na praia enquanto se espera a alvorada e se tenta ignorar a crescente ressaca de uma longa noitada de caipirinhas.



Simão Martins
"Wine In The Afternoon"
Franz Ferdinand

Nota mental número 1: não há Verão sem vinho. De preferência branco, gelado, a acompanhar o bom do peixe grelhado. A deixar entrar a maresia pela casa adentro, enquanto os acordes da guitarra acústica (!) dos Franz Ferdinand se vão impondo e provar que também em Glasgow a época mais quente do ano é motivo de celebração. Curiosamente, o quarteto escocês que se impôs pelos riffs frenéticos é, ao mesmo tempo, certeiro quando se trata de pegar nas cordas de aço em formato unplugged e ir a cantarolar na carrinha. Certamente que “Wine in the Afternoon” foi concebida neste ambiente. Certamente que regada com bom vinho.

"A Message to You, Rudy"
The Specials

Nota mental número 2: não há cá Verões sem xadrezes nem Ray Ban Wayfarer. Contas acertadas à entrada, é altura de resgatar os reis do ska, também eles sediados no Reino que dizem ter sofrido uma unificação. Aqui há tudo o que é preciso para ser feliz: guitarras em contra-tempo, harmónicas, hammonds, sopros metálicos certeiros e, consequentemente, está feita a festa. É ao som dos djambés que dançamos, prontos a qualquer altura para o mítico “ruuuuuudy” – atenção, não ignorar a nota mental número 1, qualquer vinho serve. Por outro lado, cartão vermelho para a indumentária dos Specials, sempre encasacados de cima a baixo. Isto é canção de Verão, toca a calçar umas havaianas e seguir para a areia ou para cima duma toalha de piquenique. “Ruuuuuuudy”!

"Just (Radiohead version)"
Mark Ronson
 

Nota mental número 3: Verões sem versões não vêem corações. Sobretudo quando se pega numa canção com a pujança rock de “Just”, dos Radiohead, e se transforma num pedaço de música cheia de funk e Groove. Pega-se num desconhecido Alex Greenwald, junta-se-lhe a boa lição de sopros dos Specials e a coisa cola. Cola tão bem que se destaca, pela positiva, em Versions, o disco em que o produtor e músico Mark Ronson se debruça sobre alguns dos êxitos do indie rock dos últimos anos – algumas são estampadas a cuspo, outras nem por isso. Mas esta “Just” consegue distanciar-se competentemente da sua sombra, o que por si só é já um feito. Só que, ao darmos por nós a ouvi-la aquando de uma viagem de carro onde só os grandes passam, ela resulta em bem mais que isso. É só uma das minhas canções de Verão para o Bodyspace.



27/07/2010