América do Avesso: duas esperanças do underground norte-americano
· 19 Set 2006 · 08:00 ·

 

Pretty Flowers
Pretty Flowers EP

Banana Seat Records
2006

Não pára de surpreender o admirável mundo da referencialidade. O bebé roliço que se debruçava sobre a sanita na capa de um dos mais conseguidos discos de Sebadoh, Bakesale, não se ficou por esse mau hábito e na capa deste EP surge num ostensivo flashing perante duas miúdas aparentemente chocadas.

Contudo, a capacidade de chocar dos Pretty Flowers limita-se ao risco da fotografia escolhida para a fachada do modesto lançamento na Banana Seat – o restante conteúdo fica-se por um rock sobre zinco quente, com atitude espicaçada por poderio Bush, vocalizações ríspidas e decadentes em “Riot†(cuja atitude pode bem ter sido herdada aos Total Chaos) e a mira melódica apontada ao que de mais genérico produzem os estados costeiros que, só por convenção, se afirmam unidos aos restantes. Nem sequer se avista réstia de sugestividade arty que abençoe a banda sedeada em Brooklyn. Rock meramente satisfatório praticado por uns Pretty Flowers que terão de fazer mais pelo umlaut Motörheadiano que aplicaram ao seu “oâ€.

 

Geisha Girls
Disappearing Act

Number 3 Records
2006

Devo confessar que encarava com tremendo cepticismo os antecedentes que pareciam, a todo o custo, condicionar o muito balado e eternamente adiado filme Memórias de uma Geisha, que, eventualmente, veio a conhecer a direcção do tarefeiro Rob Marshall e, muito à custa do seu perfume exótico e dimensões épicas (absolutos turn ons para a Academia), a nomeação para melhor filme na cerimónia de entrega de Óscares de Março passado. As minhas principais dúvidas temporárias prendiam-se com duas questões óbvias: como podia Steven Spielberg convencer o mundo de que o seu principal personagem era objecto de desejo e agente profissional desse? A menos que Tom Cruise tivesse aceite o papel de geisha (e, com esse risco, resolvido dúvidas que ultrapassam, em larga escala, a trivialidade das minhas), muito dificilmente alguém pagaria para se deixar hipnotizar pela libido subtil de um personagem trabalhado por Spielberg (que, como é sabido, não tem como qualidade a mestria na direcção de actores). A segunda questão era bem mais concreta e ainda mais urgente: que métodos inventivos exploraria um realizador para converter um pãozinho tão sem sal como Ziyi Zhang numa mulher cuja mais preciosa vocação é proporcionar satisfação sexual? O mundo sabia antecipadamente que Ziyi Zhang era uma categórica ginasta entre as canas de bambu, mas temeria certamente que toda aquela candura se convertesse em pudor e relutância em comer... bom caju (aperitivo apreciado entre as geishas). Nunca cheguei a ver o filme que interrogo, mas tratou o disco em mãos de me esclarecer um pouco mais sobre as geishas.

Os Geisha Girls não são as Shonen Knife, mas prestam-se, tão directamente quanto elas, a uma abordagem declarada às suas referências. Pois se no caso das veteranas nipónicas o termo comparativo incontornável aponta para os Ramones, já estes Geisha Girls devem substancialmente parte dos royalties que venham a arrecadar, a gente tão recomendável como – e aí vem name-dropping do grosso - os T.S.O.L. (True Sounds of Liberty), Youth of Today (os despreocupados e não os straight-edge com o mesmo nome), Agent Orange e, num aspecto espiritual mais do que estritamente musical, ao tédio abafado entre quatro paredes que armou criativamente os Cure do eterno diamante Three Imaginary Boys. Também os Geisha Girls são apenas três – imaginariamente projectados em meados da década de 80 - e, tal como a profissional que invocam no nome, dedicados a fazer do prazer uma arte que agrade circunstancialmente ou demonstre vasto domínio de ensinamentos acumulados.

Disappearing Act é muito mais um trabalho de costura de retalhos do que potencial parágrafo acrescentado a ser acrescentado à história do rock que suou as costas dos Estados Unidos. Contudo, safa-se engenhosamente nesse papel – é suficientemente nervoso, cafeínado e criativamente trémulo para não se limitar a ser apenas uma operação de transfusão desprovida de imaginação. Encontra em alguns dos seus riffs – nomeadamente, no que acompanha “Regrets†- o convite perfeito a uma mais intensa actividade das axilas e cessa a combustão química entre guitarra e baixo (mediada por bateria) antes que essa se deixe apoderar pela saturação e arruíne o momentum dos Geisha Girls. Apesar de singrar por ser muito mais sincrónico e directo que propriamente original, Disappearing Act tem apetrechos suficientes para matar de embaraço muito rock engravatado que desfila por ruas bem mais iluminadas do que estes Geisha Girls.

Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com

Parceiros