O
passar do tempo não tem esgotado a inusitada capacidade da música popular
de dar à luz, consagrar e, nos casos mais extremos, alimentar-se do despojo
dos seus outrora deuses, hoje vÃtimas. O carrocel gira depressa demais para
complacências com a natureza humana arrebatada pelo trono cintilante, mas
há quem passe obliquamente pela ratoeira e consiga salvar a pele.
A 22 de Maio de 1959, Manchester viu nascer um dos ossos mais duros que o
Ãmpeto canibal da cultura pop alguma vez poderá ter namoriscado, Steven Patrick
Morrissey. As raÃzes irlandesas casavam com o conservadorismo e a austeridade
reinante nas quatro paredes que não conseguiriam sufocar a frontalidade indomada
e o talento que escorreria para uns quaisquer cadernos de folhas soltas e
amareladas. Morrissey (ou Mozz, ou Mozzer – tudo menos Steve) e ambiguidade
tornar-se-iam sinónimos com a bênção do tempo, e o baptismo vinha em forma
de presidência do clube de fãs inglês dos New York Dolls, expoente máximo
de androginia da altura e exemplo aproximado daquilo que Morrissey havia de
ser: personificação do choque, agente autorizado do confronto.
A história não reza de uns Slaughter & The Dogs porque não foram à bola com
o timbre de digestão nem sempre pacÃfica que era e continua a ser marca registada
de Morrissey, e não lhe deixaram outra hipótese a não ser confiar naquele
tipo porreiro que alguém lhe apresentara e que trabalhava atrás do balcão
da loja de música, Johnny Marr. O resto é a história dos The Smiths, boa parte
da história pós-erupção do punk e história de como os malefÃcios da então
emergente synth-pop não terão atingido tanto a costa como o seu imenso potencial
permitia.
Os
desabafos de Morrissey encontravam agora abrigo nos riffs de Johnny
Marr, demasiado perfeitos e cristalinos para fluirem de alguém que não tenha
nascido com uma guitarra nas mãos. A indefinição transbordante dos versos
polémicos de Morrissey tinha significativa quota-parte de responsabilidade
no abanão que The Smiths, disco de entrada de uma banda ainda a apalpar
terreno, inflingiria dois anos depois, em 1984. Nem a produção facilmente
perfectÃvel desmotivava Morrissey de confissões “humildes†como “a crÃtica
só pode adorar o disco†ou “é simplesmente um marco da música popâ€,
e a verdade é que se a primeira pode dar azo a muita conversa, é indiscutÃvel
que a pop passou a apertar a mão aos The Smiths com o mesmo entusiasmo com
que o faria a quaisquer Beatles. The Smiths seria o tapete desenrolado
para a afirmação de Morrissey como exÃmio manipulador da imprensa e da opinião
pública, pelo menos no que respeita à capacidade de mover todos os holofotes
em seu redor. Ao mesmo tempo que o discurso era de uma aspereza irreversÃvel,
não fazendo prisioneiros, o seu vegetarianismo impedia qualquer condescendência
com uma famÃlia real “idiota e desprovida de qualquer tipo de inteligênciaâ€
- leia-se “eles gostam de caçadas ao fim de semanaâ€, e nem os próprios
companheiros da banda estavam autorizados a aparecer publicamente nas imediações
de qualquer vulgar bife de vaca, uma questão de coerência para quem escreveu
e cantou “and the flesh you so fancifully fry / is not succulent, tasty
or nice / it’s death for no reason / and death for no reason is murder / do
you know how animals die?â€. PolÃticos mereciam o mesmo respeito de Morrissey;
as orelhas de Thatcher ardiam insistentemente como só se voltou a ver na floresta
portuguesa em 2003, e recentemente Blair teve a oportunidade de saber, com
as letras todas, que Morrissey só se deixaria encantar por futebol se este
fosse jogado aos chutos na cabeça dele.
As letras dos Smiths (ou de Morrissey) narram essencialmente uma existência
introvertida, por vezes abeirada da histeria inerente à manifestação teatral
de um sentimento de exclusão e de incompatibilidade com o mundo. Esta forma
de estar, aliada a um carisma invulgar, elevou Morrissey ao panteão pop, transformou
as performances dos Smiths em demonstrações de fanatismo desbragado por fãs
– homens, a maior parte das vezes – que ansiavam pelo momento de realização
máxima que consistia em atingir o palco, para poder tocar Morrissey por um
instante que fosse, como que acometidos da pior das enfermidades diante do
mais milagroso dos curandeiros.
A sexualidade de Morrissey, o tabu por excelência. Se Morrissey afirma que
as letras são exposição directa daquilo que seria o seu diário (caso tivesse
escrito um), não é de fácil compreensão que alguém responsável por fragmentos
imortalizados como “I am human and I need to be loved / just like everybody
else does ou “last night I dreamt / that somebody loved me / no hope,
no harm / just another false alarm / so tell me how long / before the last
one / and tell me how long / before the right one†defina o seu eterno
celibato como consequência da natureza individual do ser humano. O mais fundo
que Morrissey aceita ir neste assunto é confessar estranheza perante o modus
vivendi daqueles que não aceitam o ser humano como destinado a, na melhor
das hipóteses, ser feliz consigo próprio, e nunca com mais alguém.
Voltando
aos Smiths propriamente ditos, ao contrário da aversão a telediscos apenas
torneada em 1986 por ocasião de “The Boy With The Thorn In His Sideâ€, o single foi sempre formato privilegiado. Entre o lançamento dos quatro álbuns, que
viram a luz do dia à cadência de um por ano, os Smiths lançavam isoladamente
(ou aos pares) perfeitas canções pop como se estas saÃssem de uma linha de
montagem. A fórmula parecia inesgotável, e no que toca a álbuns The Smiths
teria como sucessores Meat is Murder e The Queen is Dead, com
este último a ser o apogeu quase unânime da banda e especialmente de um letrista
absolutamente incomparável cuja verborreia pungente (“her very Lowness
with her head in a sling / I'm truly sorry but it sounds like a wonderful
thingâ€), aliada a um cepticismo indisfarçado mas em ferida permanentemente
aberta (“I don't dream about anyone except myselfâ€, “I've already
waited too long / and all my hope is goneâ€) e a uma capacidade aparentemente
inata de investir contra o instituÃdo - chamando a si frequentes comparações
ao Ãdolo de sempre Oscar Wilde, muito por força das nebulosas alusões à sexualidade
que escorriam de letras como “hand in glove / the sun shines out of our
behinds / no it's not like any other love / this one is different because
it's us†- o colocava num pedestal sem qualquer tipo de congéneres identificados.
Ao mesmo tempo, estava fabricada a teia peganhenta em que se embrenharia uma
nova geração de músicos que viria a dar corpo à chamada britpop. Suede,
The Verve, Oasis ou Radiohead poderiam não passar de nomes de sapatarias se
a banda daquele vocalista ostentoso e desbocado, que não tinha pejo em acusar
a mesquinhez do ser humano - “we hate it when our friends become successfulâ€
- ou evangelizar contra o vácuo de outra música – “burn down the disco
/ hang the blessed DJ / because the music that they constantly play / it says
nothing to me about my life†-, e que actuava com flores debruçadas dos
bolsos das calças não tivesse dominado as parangonas de boa parte da década
de 80 e deixado um dos legados mais inspirados e inspiradores.
Também há hiatos nesta história feliz. Enrascado pela heroÃna, o baixista
Andy Rourke seria empurrado temporariamente para fora do grupo. Mike Joyce,
outro homem na sombra da dupla Morrissey-Marr, resistira no limite à pressão
dos colegas, insatisfeitos com o seu desempenho algo limitado na bateria por
alturas do disco de estreia. Coincidência ou não, o derradeiro encontro dos
quatro rapazes de Manchester haveria de ocorrer, muitos anos após a dissolução
da banda, na barra dos tribunais, com Morrissey e Marr acusados de abarbatar
o quinhão de Rourke e Joyce nos rendimentos dos Smiths.
Muito antes, a deterioração do relacionamento entre os dois lÃderes avançava
com os dias, e a isso se podem sacar responsabilidades sobre um quarto álbum
que extravasava uma atitude a roçar o póstumo. Strangeways, Here We Come - “Strangeways†era, adequadamente, nome de um estabelecimento prisional -
é escoado num tom amargo, de ainda maior conformismo perante a realidade da
despedida (“Death at One’s Elbow†ou o incontornável “Girlfriend in a Comaâ€),
de quem toma definitivamente consciência do carácter irreversÃvel do Fado
(“Death of a Disco Dancerâ€, “I Started Something I Couldn’t Finishâ€). Corria
1987 e terminava uma aventura de pouco mais de quatro anos cujo fruto cristalizaria
instantaneamente, destinado que estava a confortar (ou afundar mais ainda)
gerações consecutivas de eternos desenquadrados e amargurados sem esperança
de reabilitação.
Muita
polémica por atear remanescia em Morrissey. Uma congénita vocação para resumir
em cinco palavras ou numa simples analogia os dilemas, interrogações e desabafos
de uma existência desajustada, também. A solidão passaria a ser companheira
também em palco, praticamente imposta que era uma carreira a solo (que não
será por acaso que rima com “desconsoloâ€...). Nunca mais Morrissey encontraria
as condições para brilhar de que anteriormente usufruÃra; os diferendos travados
com Marr levaram este último a seguir o seu próprio caminho – no qual se encontraria
com Talking Heads e The The, para bem mais tarde assentar nos The Healers
-, uma bÃlis sempre problemática afastava o interesse de agentes discográficos
que em troco de nada se dispunham a acolher uma bomba-relógio capaz de cantar
inconveniências como “at the record company party / on their hands, a dead
star / the sycophantic slags all say / "I knew him first, and I knew him well"
/ sadly this was your life / but you could have said no / if you wanted toâ€)...
Não espanta que tempos áureos como aqueles em que os singles dos Smiths
tomavam de assalto os tops britânicos tivessem ficado definitivamente para
trás. Curiosamente, Morrissey afastar-se-ia progressivamente de uma Inglaterra
pequena demais para todas as rixas que com ele travara, para encontrar refúgio
nuns Estados Unidos da América que garantiam alguma quietude a um espÃrito
cansado de altercações constantes. A carreira a solo seguiria qual montanha
russa, plena de altos e baixos, singles arrebatadores e discos pouco interessantes.
Todavia, o carisma que com ele nasceu garante enchentes em tempo recorde nas
salas mais reputadas, sem publicidade de qualquer espécie.
Sobre Morrissey, Noel Gallagher disse um dia que “ninguém sabe como ele
realmente é, como pessoa. Talvez a mãe o saiba... Acho que nem ele sabe, na
verdadeâ€. Importa a todos saber que é um dos maiores poetas (na sua muito
distinta forma de o ser, por isso incomparável a qualquer outro) ao serviço
da música de sempre. CÃnico, sarcástico, amargurado, teatral como mais ninguém.
Pessoa não hesitaria em chamar-lhe “fingidorâ€.