Morrissey - O Rei está vivo
· 23 Abr 2004 · 08:00 ·

O passar do tempo não tem esgotado a inusitada capacidade da música popular de dar à luz, consagrar e, nos casos mais extremos, alimentar-se do despojo dos seus outrora deuses, hoje vítimas. O carrocel gira depressa demais para complacências com a natureza humana arrebatada pelo trono cintilante, mas há quem passe obliquamente pela ratoeira e consiga salvar a pele.
A 22 de Maio de 1959, Manchester viu nascer um dos ossos mais duros que o ímpeto canibal da cultura pop alguma vez poderá ter namoriscado, Steven Patrick Morrissey. As raízes irlandesas casavam com o conservadorismo e a austeridade reinante nas quatro paredes que não conseguiriam sufocar a frontalidade indomada e o talento que escorreria para uns quaisquer cadernos de folhas soltas e amareladas. Morrissey (ou Mozz, ou Mozzer – tudo menos Steve) e ambiguidade tornar-se-iam sinónimos com a bênção do tempo, e o baptismo vinha em forma de presidência do clube de fãs inglês dos New York Dolls, expoente máximo de androginia da altura e exemplo aproximado daquilo que Morrissey havia de ser: personificação do choque, agente autorizado do confronto.
A história não reza de uns Slaughter & The Dogs porque não foram à bola com o timbre de digestão nem sempre pacífica que era e continua a ser marca registada de Morrissey, e não lhe deixaram outra hipótese a não ser confiar naquele tipo porreiro que alguém lhe apresentara e que trabalhava atrás do balcão da loja de música, Johnny Marr. O resto é a história dos The Smiths, boa parte da história pós-erupção do punk e história de como os malefícios da então emergente synth-pop não terão atingido tanto a costa como o seu imenso potencial permitia.

Os desabafos de Morrissey encontravam agora abrigo nos riffs de Johnny Marr, demasiado perfeitos e cristalinos para fluirem de alguém que não tenha nascido com uma guitarra nas mãos. A indefinição transbordante dos versos polémicos de Morrissey tinha significativa quota-parte de responsabilidade no abanão que The Smiths, disco de entrada de uma banda ainda a apalpar terreno, inflingiria dois anos depois, em 1984. Nem a produção facilmente perfectível desmotivava Morrissey de confissões “humildes†como “a crítica só pode adorar o disco†ou “é simplesmente um marco da música popâ€, e a verdade é que se a primeira pode dar azo a muita conversa, é indiscutível que a pop passou a apertar a mão aos The Smiths com o mesmo entusiasmo com que o faria a quaisquer Beatles. The Smiths seria o tapete desenrolado para a afirmação de Morrissey como exímio manipulador da imprensa e da opinião pública, pelo menos no que respeita à capacidade de mover todos os holofotes em seu redor. Ao mesmo tempo que o discurso era de uma aspereza irreversível, não fazendo prisioneiros, o seu vegetarianismo impedia qualquer condescendência com uma família real “idiota e desprovida de qualquer tipo de inteligência†- leia-se “eles gostam de caçadas ao fim de semanaâ€, e nem os próprios companheiros da banda estavam autorizados a aparecer publicamente nas imediações de qualquer vulgar bife de vaca, uma questão de coerência para quem escreveu e cantou “and the flesh you so fancifully fry / is not succulent, tasty or nice / it’s death for no reason / and death for no reason is murder / do you know how animals die?â€. Políticos mereciam o mesmo respeito de Morrissey; as orelhas de Thatcher ardiam insistentemente como só se voltou a ver na floresta portuguesa em 2003, e recentemente Blair teve a oportunidade de saber, com as letras todas, que Morrissey só se deixaria encantar por futebol se este fosse jogado aos chutos na cabeça dele.
As letras dos Smiths (ou de Morrissey) narram essencialmente uma existência introvertida, por vezes abeirada da histeria inerente à manifestação teatral de um sentimento de exclusão e de incompatibilidade com o mundo. Esta forma de estar, aliada a um carisma invulgar, elevou Morrissey ao panteão pop, transformou as performances dos Smiths em demonstrações de fanatismo desbragado por fãs – homens, a maior parte das vezes – que ansiavam pelo momento de realização máxima que consistia em atingir o palco, para poder tocar Morrissey por um instante que fosse, como que acometidos da pior das enfermidades diante do mais milagroso dos curandeiros.

A sexualidade de Morrissey, o tabu por excelência. Se Morrissey afirma que as letras são exposição directa daquilo que seria o seu diário (caso tivesse escrito um), não é de fácil compreensão que alguém responsável por fragmentos imortalizados como “I am human and I need to be loved / just like everybody else does ou “last night I dreamt / that somebody loved me / no hope, no harm / just another false alarm / so tell me how long / before the last one / and tell me how long / before the right one†defina o seu eterno celibato como consequência da natureza individual do ser humano. O mais fundo que Morrissey aceita ir neste assunto é confessar estranheza perante o modus vivendi daqueles que não aceitam o ser humano como destinado a, na melhor das hipóteses, ser feliz consigo próprio, e nunca com mais alguém.

Voltando aos Smiths propriamente ditos, ao contrário da aversão a telediscos apenas torneada em 1986 por ocasião de “The Boy With The Thorn In His Sideâ€, o single foi sempre formato privilegiado. Entre o lançamento dos quatro álbuns, que viram a luz do dia à cadência de um por ano, os Smiths lançavam isoladamente (ou aos pares) perfeitas canções pop como se estas saíssem de uma linha de montagem. A fórmula parecia inesgotável, e no que toca a álbuns The Smiths teria como sucessores Meat is Murder e The Queen is Dead, com este último a ser o apogeu quase unânime da banda e especialmente de um letrista absolutamente incomparável cuja verborreia pungente (“her very Lowness with her head in a sling / I'm truly sorry but it sounds like a wonderful thingâ€), aliada a um cepticismo indisfarçado mas em ferida permanentemente aberta (“I don't dream about anyone except myselfâ€, “I've already waited too long / and all my hope is goneâ€) e a uma capacidade aparentemente inata de investir contra o instituído - chamando a si frequentes comparações ao ídolo de sempre Oscar Wilde, muito por força das nebulosas alusões à sexualidade que escorriam de letras como “hand in glove / the sun shines out of our behinds / no it's not like any other love / this one is different because it's us†- o colocava num pedestal sem qualquer tipo de congéneres identificados.

Ao mesmo tempo, estava fabricada a teia peganhenta em que se embrenharia uma nova geração de músicos que viria a dar corpo à chamada britpop. Suede, The Verve, Oasis ou Radiohead poderiam não passar de nomes de sapatarias se a banda daquele vocalista ostentoso e desbocado, que não tinha pejo em acusar a mesquinhez do ser humano - “we hate it when our friends become successful†- ou evangelizar contra o vácuo de outra música – “burn down the disco / hang the blessed DJ / because the music that they constantly play / it says nothing to me about my life†-, e que actuava com flores debruçadas dos bolsos das calças não tivesse dominado as parangonas de boa parte da década de 80 e deixado um dos legados mais inspirados e inspiradores.

Também há hiatos nesta história feliz. Enrascado pela heroína, o baixista Andy Rourke seria empurrado temporariamente para fora do grupo. Mike Joyce, outro homem na sombra da dupla Morrissey-Marr, resistira no limite à pressão dos colegas, insatisfeitos com o seu desempenho algo limitado na bateria por alturas do disco de estreia. Coincidência ou não, o derradeiro encontro dos quatro rapazes de Manchester haveria de ocorrer, muitos anos após a dissolução da banda, na barra dos tribunais, com Morrissey e Marr acusados de abarbatar o quinhão de Rourke e Joyce nos rendimentos dos Smiths.

Muito antes, a deterioração do relacionamento entre os dois líderes avançava com os dias, e a isso se podem sacar responsabilidades sobre um quarto álbum que extravasava uma atitude a roçar o póstumo. Strangeways, Here We Come - “Strangeways†era, adequadamente, nome de um estabelecimento prisional - é escoado num tom amargo, de ainda maior conformismo perante a realidade da despedida (“Death at One’s Elbow†ou o incontornável “Girlfriend in a Comaâ€), de quem toma definitivamente consciência do carácter irreversível do Fado (“Death of a Disco Dancerâ€, “I Started Something I Couldn’t Finishâ€). Corria 1987 e terminava uma aventura de pouco mais de quatro anos cujo fruto cristalizaria instantaneamente, destinado que estava a confortar (ou afundar mais ainda) gerações consecutivas de eternos desenquadrados e amargurados sem esperança de reabilitação.

Muita polémica por atear remanescia em Morrissey. Uma congénita vocação para resumir em cinco palavras ou numa simples analogia os dilemas, interrogações e desabafos de uma existência desajustada, também. A solidão passaria a ser companheira também em palco, praticamente imposta que era uma carreira a solo (que não será por acaso que rima com “desconsoloâ€...). Nunca mais Morrissey encontraria as condições para brilhar de que anteriormente usufruíra; os diferendos travados com Marr levaram este último a seguir o seu próprio caminho – no qual se encontraria com Talking Heads e The The, para bem mais tarde assentar nos The Healers -, uma bílis sempre problemática afastava o interesse de agentes discográficos que em troco de nada se dispunham a acolher uma bomba-relógio capaz de cantar inconveniências como “at the record company party / on their hands, a dead star / the sycophantic slags all say / "I knew him first, and I knew him well" / sadly this was your life / but you could have said no / if you wanted toâ€)... Não espanta que tempos áureos como aqueles em que os singles dos Smiths tomavam de assalto os tops britânicos tivessem ficado definitivamente para trás. Curiosamente, Morrissey afastar-se-ia progressivamente de uma Inglaterra pequena demais para todas as rixas que com ele travara, para encontrar refúgio nuns Estados Unidos da América que garantiam alguma quietude a um espírito cansado de altercações constantes. A carreira a solo seguiria qual montanha russa, plena de altos e baixos, singles arrebatadores e discos pouco interessantes. Todavia, o carisma que com ele nasceu garante enchentes em tempo recorde nas salas mais reputadas, sem publicidade de qualquer espécie.

Sobre Morrissey, Noel Gallagher disse um dia que “ninguém sabe como ele realmente é, como pessoa. Talvez a mãe o saiba... Acho que nem ele sabe, na verdadeâ€. Importa a todos saber que é um dos maiores poetas (na sua muito distinta forma de o ser, por isso incomparável a qualquer outro) ao serviço da música de sempre. Cínico, sarcástico, amargurado, teatral como mais ninguém. Pessoa não hesitaria em chamar-lhe “fingidorâ€.

Carlos Costa

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