Slam, poesia, irreverência
· 01 Abr 2004 · 09:00 ·

Tradução de Joana Rei

Durante os dias mais quentes de Verão, fiquei surpreendida com o cartaz de uma das salas de cinema mais comerciais da minha cidade. Ali estava “Slamâ€, a aposta documental poética do realizador americano Marc Levin, protagonizada por Saul Williams e outros actores amadores (na sua maioria, presos a cumprir pena). O guião de Richard Stratton – escrito depois de oito anos na cadeia por tráfico de drogas. A sua passagem silenciosa pelos cinemas deste país foi parecida à trajectória de um avião de papel sobrevoando telhados e terraços.

© Anna Barba
Ray Josua (Saul Williams), poeta e rapper, vive num bairro de fraca reputação de Washington D.C. Um dia é apanhado juntamente com o seu dealer, que acaba por ser abatido em plena rua pela polícia. Ray é detido por posse de cannabis e encerrado numa prisão federal, dividida em dois grupos irreconciliáveis. Atrás das grades, e com a improvisação lírica com batida rap como escudo, e o apoio de Lauren Bell (Sonja Sohn) – a professora que dá aulas de alfabetização –, mostrará uma nova e brilhante via de esperança para os que sentem a pressão das penas a que foram condenados.

O movimento Slam, próximo do hip-hop e do rap, floresce na atmosfera punk dos anos 80 de uma Chicago suburbana, coberta de nevoeiro e de reputação duvidosa. A poesia Slam situa-se na vontade férrea de acabar com a individualidade criativa do acto poético, para a partilhar e construir um diálogo enérgico e vital.

Um feito isolado serve de rampa de lançamento, o delírio de um rapaz com ar provocador, Jérôme Salla, que recita o seu poema “Give piss a chanceâ€, – depois da morte de John Lennon – encurralado entre as cordas de um ringue, acompanhado de outro poeta, ambos com roupas de pugilista, improvisam e aquecem um público receptivo que faz de júri.

Está claro que a árvore cresce, e que desde São Paulo, Filadélfia, Nova Iorque, L.A., Londres, Paris, Praga, Roma, Frankfurt a Berlim, a cultura Slam se expande como um rastilho, dos pulmões dos slamers às consciências dos que escutam.

Talvez no carácter espontâneo do Slam, como movimento que se sustém a si próprio, esteja implícito o seu carácter combativo e se esclareça a ideia de que, mesmo em algo circular, existem pontos de fuga.

A sua onda expansiva congrega várias artes: poesia, música, cinema, pintura, dança, etc. Informação que não passou ao lado da faminta indústria publicitária que “flirta†descaradamente com a tendência burguesa de incluir o marginal no espaço estreito do chique. Muito poucos duvidam que, nas margens do Sena, “vendível/comprável†são adjectivos que “dão lucroâ€, e que a poesia Slam, fiel às metáforas de Ray Josua, é servida em doses de cavalo. A sua integração como fórmula que define um grande número de poetas e artistas, como os reunidos na compilação The Cuban Hip-Hop All Stars, Vol. 1. Various Artists, Ursula Rucker no ponto exacto entre Slam em estado puro e as bases rítmicas com que ilustra os seus poemas, Spearhead, Jungle Brothers, Omar, Jazzanova, Gilles Peterson, que além de um militante é um austero mecenas, Gil Scott-Heron, e muitos com o selo americano Parental Advisory Label, etc.

Outras vozes começam a fazer-se ouvir nesta pátria, os que participaram na primeira edição do festival Experimentaclub 03 (Poesia / Polipoesia), celebrado em La Casa Encendida, em Madrid, nos dias 4 e 5 de Outubro passado… Participaram jovens autores europeus: Jörg Piringer, Dídac P. Lagarriga e Anne-James Chatton, e nomes fortes do underground poético de Barcelona: Enric Casasses, Bartolomeu Ferrando e Jordi Teixidó.

O contacto directo com o público e uma busca devastadora entre a vanguarda e a tradição, para realçar o potencial do espaço enérgico e vital da poesia como ferramenta de expressão, foram os seus cartões de visita. Um convite ao mundo da palavra e um protesto estrondoso dirigido ao rompimento com a imagem inacessível, hermética, da poesia refugiada entre as elites e a arraia-miúda.
Antonia Ortega Urbano
antonia@bodyspace.net

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