Jazzanova: ainda resístiveis ao tempo?
· 03 Set 2018 · 16:50 ·
© Georg Roske

Até é bom ela voltar ao ponto do dia neste mundo em que a música está cada vez mais entregue a produtores profissionalizados, a manipular sons como pechisbeques; é importante, senão essencial, ponderar a importância entre a proficiência e a pureza estética. É essa a questão. Duradouras canções só advêm da pureza estética – o estado anímico, essa criatura imprevisível. A técnica estuda-se, pratica-se. Mas pôr conhecimento musical em boa prática não está ao alcance de quem se limita a tamborilar um MPC por graça em gratuita feitiçaria tecnológica.

Até poderão ter começado como muitos, a brincar. Mas cedo se percebeu o seu amor pela música. A reverência pelos clássicos. Nunca se afirmaram como músicos; sempre mostraram o cartão profissional, sem ambiguidades: eram produtores e DJ’s. Ainda apareceram na era em que era preciso sair de casa e procurar discos numa loja. Já com a Internet em ascensão, ainda era assim na segunda metade dos anos 90. Não havia nada instantâneo na ponta dos dedos. A aprendizagem era longa, e a lenta absorção educadora. Era preciso perceber para mais tarde gerar mais-valia; era o engendro natural.

Os Jazzanova – e irónico soará porque parece agora uma afirmação tipo "no meu tempo é que era bom" – são os últimos da geração de grupos/ colectivos que realmente aprenderam ao velho estilo DIY e saíram da aprendizagem caseira mais competentes que muitos de formação académica. Stefan Leisering e Axel Reinemer, o núcleo duro de produção, confessam sem complexos que aprenderam com os dias, autodidactas, que a educação mais formal não os preparou tecnicamente para fazer o que acabaram a fazer. Os Jazzanova enrijeceram a experimentar, muita tentativa e erro; o engendro de quem começa na garagem, ou na cave, e muda o mundo com ciência sonora engenhosa.




O colectivo de Berlim entra na terceira era da sua existência no ano em que completa vinte e um anos de carreira. Em 1997 editaram o primeiro EP, Fedime's Flight, e daí em diante agigantaram-se quando enveredaram pelas remisturas, essa estranha arte a que muitos, demasiados, se dedicaram/ dedicam, mas que só uns quantos, muito, muito poucos, perceberam/ percebem o genuíno potencial artístico, criativo, estético. À semelhança de Kruder & Dorfmeister, Thievery Corporation, os Jazzanova ficaram conhecidos pelo arrojo de desfigurarem os originais ao ponto do irreconhecível; remisturas que na verdade eram originais.

Por aí refinaram o ofício. Pelo processo estabeleceram a sua assinatura, o cunho que os diferenciava. Os originais foram secundarizados. Chegou-se mesmo a pensar que acabariam como os Kruder & Dorfmeister, a reformarem-se como colectivo sem o atrevimento de um álbum de originais. Com In Between, em 2002, declararam-se estar para durar. E têm perseverado desde então; no entanto, com uma viragem de prioridades: a secundarização das remisturas – as antologias The Remixes de 2005 e 2017 provam-no pela dedicação menor. Em 2008 veio o segundo de originais, o bem construído Of All The Things, e em 2012, consequência da feliz transposição desse álbum para palco, apareceu Funkhaus Studio Sessions – a recriação em estúdio, com banda, como banda, com o vocalista Paul Randolph, do que era o espírito live do projecto.



Feitas as contas, The Pool chega dez anos volvidos o último de originais. Foram discretos anos em disco, essencialmente passados entre tournées pelo mundo (os produtores cada vez mais a almejar a qualificação de músicos) e DJing (o outro lado do colectivo: os bons divulgadores de música). Se há uma constante nos Jazzanova, além de operarem há anos em duas frentes que se confundem, uns produtores, outros DJs, assim se entenderem, é o propósito, e a evolução e o amadurecimento da missiva: produzir bem. Um certo estatuto advindo? Não são conhecidos pela impulsividade, bem pelo contrário. Cada vez mais demoram anos a aparecer com material original. Cada vez mais há menos tentativa e erro; o engendro de quem amadureceu e agora faz melhor uso do tempo?

Se há outra certeza hoje, ao fim destes anos, e escutado e digerido The Pool, é incapacidade dos Jazzanova de fazerem má música. É certo que nenhum dos álbuns já editados é absolutamente arrebatador. Contudo há uma qualidade composicional que torna muitos dos seus temas resistíveis ao tempo. A mescla brokenbeat, soul, jazz em In Between soa hoje tão pertinente e fascinante como quando viu a luz do dia em 2002. O classicismo pop, soul e funk, anos 60 e 70, de Of All The Things é ainda agora um sofisticado exercício revivalista – as composições continuam intactas, imunes à erosão. Com The Pool, e as subtilidades com que revestem cada tema, só levianamente se poderia afirmar que é de musicalidade fácil, canções pomposas e imediatas.

Voltemos ao início do argumento. À questão. Duradouras canções só advêm da pureza estética. Os Jazzanova têm técnica, a técnica para pôr os seus conhecimentos musicais em boa prática. Aprenderam e geraram, e geram, peças sonoras duradouras. The Pool é um disco em que o colectivo de Berlim, serenamente, mostra o que agora sabe fazer: canções. Este é o seu disco mais simples. Já lá vai a fase complexa do brokenbeat ou a fixação com os clássicos. Agora é o momento do gozo pop, aquela pop que eles acham propositada para estes dias em que tudo é automático e profissionalizado e impessoalizado. Como lhes é natural, está-lhes na massa, no ADN, foram lá trás buscar o que apreciavam para formular e formalizar o presente.



O disco começa com um tipo de actualização do tema inaugural de In Between, "Now (L.O.V.E. and You & I - Part 2) " é curto, directo, rap a chapar o que era o antes e o agora. Jazzanova a declararem que estão conscientes da passagem do tempo. E os tempos são outros. Tempos maduros. Com o enigmático "Rain Makes the River" idolatram Massive Attack à sua maneira. Depois vem o hip-hop old school de "No. 9" (a merda das festas, e o THE shit?). Adiante, a soul-funk anos 80. Pelo meio, o enorme samba-folk de "Slow Rise" (a verdadeira e grande malha deste disco). E lentamente se percebe que The Pool é o chorrilho de variedade de estilos a que os Jazzanova nos habituaram.

Repetimos: The Pool é o seu disco mais simples. O amadurecimento tem as suas qualidades. Mas, para além das subtilidades, fascinar o ouvinte, convidá-lo a voltar ao início e escutar o que não estava sublinhado – e aí batem a maioria dos produtores por saberem que é assim, à boa velha maneira, que se revestem as canções que se querem duradouras –, há um preocupante desinvestimento da parte de Stefan Leisering e Axel Reinemer no que toca à identidade, e que essencialmente passa pelo depauperar do espírito da aventura.

Além de The Pool deixar cair de vez o jazz e a bossa-nova, também não vai além dos serviços mínimos inventivos. A acomodação às canções – claramente com o intuito de as transpor para palco –, uma gestão de carreira calculista e cada vez mais aproveitarem-se da etiqueta eclético – a que o projecto sempre esteve associado justamente –, faz com que este disco seja o trabalho mais pobre de substância do colectivo. Há canções admiráveis, carregadas de amor, calorosas, previsivelmente tão boas hoje como daqui a quinze anos mal se volte a tropeçar nelas. Mas, como um todo, o terceiro disco de originais dos Jazzanova é aquele tipo de disco giro, luminoso, invejavelmente bem feito (que muitos fossem assim!) mas uma experiência estival, muito aquém do que realmente sabem. Preguiça? Não, honestamente. Foi o que estado anímico lhes determinou.



Os Jazzanova têm presença marcada em Lisboa e no Porto para a apresentação de The Pool. Na capital, passarão pelo Capitólio a 5 de Outubro. No dia seguinte, estarão pela Invicta, na Casa da Música. Mais informações sobre Jazzanova ao vivo, aqui.
Rafael Santos
r_b_santos_world@hotmail.com

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