Burial: a banda-sonora da entropia suburbana
· 05 Nov 2017 · 22:31 ·


I show you light now. It burns bright, forever.

"O subúrbio": essa entidade misteriosa e indizível, definida pela sua constante oposição. Alcatrão sobre pedra sobre alcatrão, casas-dominó, um fantasma à espreita em cada janela quando a noite se levanta e o sono toma conta de quem mora, de quem se limita a morar. Um supermercado (ou mais), um McDonald's (ou mais), dúzias de caixas multibanco, uma estação, uma igreja, um café: tudo é vazio quando o subúrbio nasce. E nasce vezes sem conta, nasce na madrugada quando alguém arrisca sair de casa para o meio da madrugada fria. E em busca de quê? De uma presença palpável, de um antídoto para si mesmo. Ou de um arcanjo.

Untrue, a obra-prima de Burial, ressoa nos headphones e faz ricochete contra as fachadas de cada prédio, saltita de escada em escada pelas ruas abaixo. Ele, Burial, William Bevan, anónimo, fantasma, o homem que ajudou a colocar a Hyperdub no mapa - ou a personagem principal do filme Hyperdub, que no fundo é também uma forma de definir o género musical pelo qual tem circulado desde South London Burroughs, de 2005. Dub pelo magnetismo hipnótico dos graves, pela batida, pelo anúncio lento de uma história de capítulos vários. Hyper porque se sente de forma extrema durante divagações psicogeográficas. Porque nos colocamos, pessoa e subúrbio, dentro do filme Burial; o dele é também o nosso e os de todo o mundo.

Dizem que Untrue evoca a morte de uma rave que nunca chegou a acontecer, o momento HunterThompsoniano em que a onda bateu com estrondo e deixou uma marca que perdurou e perdurará para sempre no tempo. O momento em que se acreditou ser possível. O retrato de milhares de mãos dadas em comunhão, antes do napalm arrasar por completo toda e qualquer esperança. Mas o subúrbio também é uma rave. Tudo parece extraordinário quando se está em drogas e a música é alta. O problema é quando o sol raia e nos apercebemos de que estamos presos, acorrentados ao subúrbio acorrentado à cidade-grande. A rave como um escape ao aceleracionismo.

It’s like they were trying to unite the whole UK, but they failed.

"Archangel", como muita da música de Burial, vai comer ao r&b e regurgita-o logo de seguida, molde irreconhecível daquilo que antes foi. Burial vive num estado de frio permanente: não só a música é absurdamente melancólica como parece ter sido inalada e solta logo a seguir, do passado - do sample - não restando mais que o branco do bafo no ar. Remetida para o início de Untrue, parece remeter para uma qualquer salvação; o ateu que na trincheira dá por si a rezar. No contexto geral de Untrue não é mais que fogo-fátuo e daí o álbum bater com tanta força, tanta que dez anos depois ainda o ouvimos, ainda falamos sobre ele, ainda escrevemos sobre ele. Na sociedade que mastiga e cospe no espaço de segundos, Untrue conseguiu o condão de resistir ao teste do tempo e nem sequer por quaisquer motivos nostálgicos, como acontece com outros álbuns da década dos zeros ainda hoje celebrados: Turn On The Bright Lights, Funeral ou Sound Of Silver, por exemplo. Untrue é diferente, porque Untrue continuará a ser escutado enquanto ainda existirem subúrbios.



Os seus passos ecoam na escuridão. Burial não precisa de utilizar a sua própria voz para declamar o seu poema por entre as casas mortas; ao invés, reutiliza as dos outros. "Near Dark" só precisou de Usher: I can't take my eyes off you. Como se o amor não pudesse existir noutro lugar senão naquele em que nos encontramos quando nos encontramos realmente abandonados. O subúrbio, na madrugada, faz-se de ausências: as dos amantes, as dos amigos, a da família. Tão perto e porém tão longe. Faz-se das memórias que temos de cada coisa e até nas memórias de uma memória - um duplo espectro que também assombra Untrue, já que Burial era demasiado novo para ter vivido o sonho da rave.

Chegar a "Ghost Hardware" depois de descer rua após rua sob o olhar atento dos candeeiros é como mergulhar num poço de alcatrão sem fundo (mesmo que a perfeição tenha quatro temas, e será difícil encontrar um vinil ou uma rodela de acrílico em que os primeiros quatro temas sejam geniais de uma ponta a outra). É quando tudo se desliga; quando os nossos sentidos nos apontam a realidade. Não há ninguém nas ruas nem há nomes escritos nas paredes - apenas o stencil de um corvo que parece rir-se da nossa própria insignificância. Na estação, de onde parte a liberdade (porque no subúrbio a única fuga é a viagem), os cabos de alta tensão parecem desabar e mergulhar o mundo em correntes. Fazem-no sem recorrer a drogas ou substâncias de outra espécie. As drogas servem para fugir à realidade. O subúrbio, muitas vezes, não parece real, como Untrue por vezes não parece ser um álbum e sim uma nuvem impregnada de anomia.

Chegamos ao ponto de nos sentirmos sem-abrigo mesmo tendo um tecto e isso é absolutamente deprimente.

Quando isto, esta coisa, este cancro nos cai em cima só nos resta mesmo o som - não a música, o som -, o hoodie colado à cabeça, o desejo de que a bófia que ronda as bebedeiras não nos incomode com três palavras que nos fariam regressar à realidade como uma trip que termina de forma abrupta: a sua identificação. O som que pode ser o de uma rave já ao longe ou o de um "Raver" que nunca o foi e que gostava de o ter sido, líder de um mundo anarco-comunista sem guerras ou garras, beijo seco no éter das coisas. Untrue não podia ter tido melhor título. É o resultado de um sonho que nunca foi verdade. Como o subúrbio, é sinónimo da maior mentira humana: o capital contra a ideia de se ser feliz. Nada aqui se passa e só um pensamento fugaz abala o torpor. Mais que dubstep ou pós-dubstep ou garage, mais que influência para as inúmeras experiências pop que se seguiram (The xx, Jamie Woon, James Blake et al), Untrue é a marca de água, a banda-sonora da entropia suburbana. O acenar dos fantasmas à janela. Que continue a acompanhar-nos por muitas e mais deambulações.

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Paulo Cecílio
pauloandrececilio@gmail.com

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