Musicbox: Dez anos a elevar Lisboa
· 28 Jan 2016 · 11:34 ·
Mac DeMarco © Rita Sousa Vieira

Todas as noites, em especial aos fins-de-semana, a rua cor-de-rosa do Cais do Sodré enche-se de vida. São multidões atrás de multidões, à procura do último copo ou do primeiro beijo. Gente que entra em qualquer um dos estabelecimentos que por lá se encontram, na esperança de aniquilar o stress semanal, esquecer por umas horas aquilo que se passa entre as 9h e as 17h de segunda a sexta-feira. Amigos que se encontram ou reencontram e celebram como se a vida dependesse disso - e depende, claro que depende. Mas há um espaço em particular onde essa boémia não o é apenas; há toda uma cultura mais ou menos escondida dentro das suas portas, uma cultura que tem vindo a ser cada vez mais reconhecida, feita por e para Lisboa. O Musicbox celebra em 2016 dez anos de existência, dez anos ao longo dos quais se firmou enquanto pólo cultural e social, e onde a música detém um papel importantíssimo, ou não fosse aqui ter nascido o OFFBEATZ, o Urban Routes, até mesmo o Festival Silêncio ou a própria Príncipe, que daqui se espalhou pelo mundo.

Sendo um espaço destinado à música ao vivo, é claro - e normal - que o reconhecimento do Musicbox passe muito por essa vertente. Por aqui passaram, só no último ano, talentos emergentes como os Galgo ou bandas de créditos firmados como os PAUS e os Linda Martini, sem descurar nomes além-fronteiras de grande relevância como La Femme, Earth ou até Bonga. Mas não é só com este género de cardápios que o Musicbox tem alimentado a população melómana e interessada. Tem também um papel activo na produção cultural, ajudando a editar, por exemplo, discos de artistas como os Throes + The Shine ou MEDEIROS/LUCAS. O financiamento de tudo isto é privado, alcançado com o seu próprio suor, num modelo que Pedro Azevedo, programador do espaço e DJ residente enquanto La Flama Blanca, considera ser justo tanto para o Musicbox como para os próprios artistas. Os próximos a ser alvo de atenção serão os Memória de Peixe. «Fazemo-lo porque acreditamos no potencial das bandas», confessa Pedro.

Nasceu há dez anos do "velho" Texas Bar, mas continua a deter o seu espírito, sendo que este é ainda uma referência para o que hoje a população mais atenta chama de "Musicbox". Não foi difícil, contudo, "substituir" um pelo outro. «Nos primeiros anos, a presença do Texas era muito forte; mantivemos as mesas, por exemplo», diz-nos Pedro, esclarecendo logo depois que quaisquer dores de crescimento sentidas foram as mesmas de qualquer negócio. A entrada forte do Musicbox no que à oferta cultural diz respeito ajudou a dissipar quaisquer dúvidas que pudessem existir. O primeiro concerto acolhido pelo espaço foi estreia nacional, e de um nome reconhecido por qualquer amante de música: ?uestlove. Uma semana depois, era Kode9, num ano em que o dubstep se começava a disseminar pelos mais atentos, a ocupar-se do palco.

Este início é também ele sintomático daquilo que o Musicbox pretende: mostrar o que de melhor se faz na música urbana, incidindo sobretudo os holofotes sobre artistas ou bandas emergentes, mas sem ceder à tentação. «Hoje em dia, o que se passa lá fora e chega até ti chama-se hype. E hype não significa following. Obviamente que há coisas que são inspiração, mas [antes de programar] pensamos primeiro em como é que um determinado artista pode ser adaptado ao espaço», diz, acrescentando, «há determinados artistas que eu adorava trazer cá, mas dos quais tenho consciência de que não vingariam neste mercado». A programação é pensada ao pormenor, e é rigorosa. Não basta a um artista ter qualidade; tem também que ser relevante, tem de fazer com que o público sinta que está a assistir ao espectáculo no momento exacto, sendo que é este o objectivo máximo do Musicbox.

Azevedo não consegue apontar momentos específicos em que tenha sentido que o seu trabalho - e o de toda a equipa Musicbox - estava a ser reconhecido, mas destacou alguns: aquele vivido em Abril de 2009, por exemplo, quando a Câmara Municipal de Lisboa pediu ao espaço que programasse as comemorações dos 35 anos da Revolução dos Cravos, num evento que juntou nomes como Janita Salomé, Sam The Kid, Dead Combo, Camané ou José Mário Branco. Ou mesmo o facto de ter ajudado os Orelha Negra, hoje uma verdadeira instituição da música Made in Portugal, a montar o seu primeiro concerto. Ou, mais recente ainda, o concerto esgotadíssimo («em menos de 24 horas», sublinha) que os Future Islands ali deram. São muitos momentos, muitas memórias, num trabalho em que o mais importante é, como em tudo, a diversão pessoal - e é precisamente devido a essa diversão, que sente todas as noites, ano após ano, que não consegue responder à nossa pergunta de forma concreta. «É uma missão que nunca acaba; há sempre conceitos renovados, novas ideias a atingir».

Contudo, há um "bebé", como Pedro carinhosamente lhe chama, que deverá agradar ligeiramente mais do que os outros: o Jameson Urban Routes, festival que nasceu no Musicbox e que tem revelado cartazes interessantíssimos, de edição em edição. Em 2015 apresentou, quiçá, o melhor cartaz do ano de um festival português, com Pega Monstro, La Femme, Inga Copeland ou PAUS a assinarem concertos extraordinários. Pode dizer-se que o Urban Routes desempenha, para o Musicbox, o mesmo papel que festivais como o Milhões de Festa ou o Barreiro Rocks desempenham nas suas respectivas cidades; dão visibilidade, criam culto, geram interesse e público. A programação do festival não está muito longe daquilo que o espaço apresenta durante o resto do ano - é, aliás, o seu reflexo, uma «espécie de showroom daquilo que é a filosofia programática do Musicbox».

Uma filosofia que passa, como já referido, pela música urbana, por aquilo que se ouve nas grandes cidades e grandes pólos habitacionais. Uma música onde cabe heavy metal, rock, pop, electrónica, até mesmo cumbia - tendo sido o Musicbox, também ele, um dos grandes responsáveis pela introdução do género em Portugal, e onde Pedro Azevedo teve e tem um papel preponderante enquanto La Flama Blanca, DJ residente nas noites de Baile Tropicante, dedicadas a esta música. «Até há três, quatro anos, ninguém ouvia música latina. A malta fugia a sete pés porque pensava em salsa e merengue... Hoje em dia até o Milhões de Festa programa Chancha Via Circuito [produtor de Buenos Aires que actuou no festival barcelense em 2015], o que quer dizer que conseguimos criar uma trend», diz-nos, orgulhoso.

E será difícil separar o Pedro La Flama Blanca do Pedro Azevedo? «La Flama surge numa altura em que precisei de me desligar do trabalho de programador», confessa. Até porque ser programador é, tal qual a morte, um acto solitário: «Quando chego a casa, as únicas pessoas com quem posso falar sobre o meu trabalho são outros programadores...» Mas La Flama Blanca é mais do que um hobby; é uma figura que nasceu da necessidade, que como sabemos é a mãe da invenção. «Surgiu porque não encontrei ninguém que conseguisse passar exactamente aquelas músicas que eu queria», conta. E é normal que La Flama, o DJ, detenha alguma influência sobre Pedro Azevedo, programador, mas o próprio sublinha que «é preciso não cair na tentação de pensar que o que eu gosto é aquilo de que a cidade precisa».

A cidade, sempre a cidade, porque a música é urbana - e porque o Musicbox está voltado para Lisboa, porque a sua vontade é criar em Lisboa, algo que continuará a fazer enquanto a sua equipa de sentir útil. O que não quer dizer que outros Musicboxs não possam nascer em outras tantas localidades. Aliás, num mundo ideal, seria isso o mais correcto. «Faltam mais Musicboxs, mais ZDBs, mais Luxs, mais Maria Matos...», desabafa Pedro, ressalvando que não existe entre cada um destes espaços - também eles marcas indeléveis na cena cultural da capital - qualquer tipo de concorrência, mas sim uma salutar amizade. Outra coisa também não seria de esperar, numa cidade onde não existe um público «que se interesse verdadeiramente por tudo» - ou, existindo, é escasso.

Essa vontade de criar para Lisboa acabou por ter, nos últimos anos, repercussões no mundo inteiro, com o impacto global que a Príncipe granjeou no meio da música de dança underground. As Noites Príncipe são, ainda hoje, um acontecimento - tendo daqui saído os nomes que têm pasmado publicações e webzines de relevo pelo mundo fora, e posto a dançar todos os que têm tido a oportunidade de apanhar sets de gente como Marfox ou Nigga Fox. O papel que o Musicbox teve neste crescimento é notório. «A colaboração [com a Príncipe] é muito íntima. A Príncipe é um óptimo exemplo de algo que consegue exportar produto português mantendo uma identidade muito forte», explica Pedro, acrescentando que a editora «soube esperar pelo momento certo», algo que outros movimentos espalhados por Lisboa ou por Portugal têm de saber fazer. «Existem muitos movimentos, mas a questão é saber quantos terão a vontade que a Filho Único ou outras editoras e promotoras tiveram... Há muita falta de tesão», lamenta. «Há malta que acha que as coisas lhes caem aos pés».

O próximo ano poderá ser vital para a música portuguesa, já que o festival holandês Eurosonic irá destacar o país na sua próxima edição, naquela que será uma oportunidade de ouro para muitas das bandas e artistas que têm gerado buzz por cá. O programador não tem dúvidas: «É crucial que as bandas que lá estejam representadas tenham a capacidade de perceber o que se passa no De Oosterpoort, que é o centro de conferências e reuniões. Não basta marcar reuniões com um agente e dizer "vem ver o nosso concerto!" É preciso ter reuniões de management, de publishing, com a distribuição... É preciso uma preparação muito grande para aproveitar esta oportunidade». Para Pedro Azevedo, para além da falta de tesão existe uma certa falta de romance. «O Regula deve ser dos gajos que mais discos vende em Portugal. Porquê? Vende-os na barbearia dele... É brutal, é uma dose de contracultura e de luta contra o sistema pelo qual só podes sentir empatia», explica.

Enquanto o Eurosonic não chega, venham daí essas celebrações. Para já estão confirmadas dez festas, espalhadas ao longo dos próximos meses, sendo que a primeira, com o sueco Jay-Jay Johanson e os britânicos The Correspondents, ocorre já este sábado a partir das 22h. Fevereiro e Março trarão consigo nomes como Stephen O'Malley, A Place To Bury Strangers e KVB, sendo que a quarta e quinta edições também estão já programadas - mas nada diremos, para não estragar a surpresa. A única coisa que poderemos garantir, tal como Pedro Azevedo, é que no final do ano as paredes da casa-de-banho do backstage voltarão a encher-se de autocolantes, assinaturas e dedicatórias diversas. «Neste momento não há lá nada, porque pintámos por cima, algo que fazemos todos os anos; dá-te um sentido de renovação, uma motivação extra. Tenho uma parede em branco e só tenho que a preencher da melhor forma». E tudo parece indicar que assim será.
Paulo Cecílio
pauloandrececilio@gmail.com

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