Lázaro morreu. Que viva Lázaro
· 15 Jan 2016 · 11:12 ·


Sometimes I get so lonely


Lázaro morreu. A doença levou a sua alma e o seu corpo. Lázaro morreu, sem que tivesse tido a possibilidade de, uma vez mais, transformar radicalmente o mundo, conforme o fez ao longo de quase sete décadas; a vida, madrasta, pregou-lhe uma rasteira depois de tanto tempo a correr junto a si. Lázaro morreu e, quatro dias depois, não consta que um qualquer Cristo surja de rompante e sem aviso, pronto a trazê-lo desse mundo dos mortos onde demasiada gente pernoita e onde tantos outros chegarão um dia.

Era Lázaro, na mesma medida em que era David, somente David, quando acordava de manhã junto da sua mulher, junto das suas amantes, dos seus amantes. Era David Robert Jones na certidão de nascimento, um pedaço ridículo de papel que obscurece aquilo que o seu génio foi na realidade. Mas nos nossos corações era Bowie: a figura, o mito, o Homem desdobrado em milhentas máscaras, actor em cima de um palco colossal, aplaudido sempre e renegado jamais.

Actor, porque precisámos que o fosse; as suas máscaras eram cada um de nós, cada traço das nossas próprias personalidades, para que para ele olhássemos e não tivéssemos medo de assumir a verdade que somos. Bowie não foi o que quis, foi o que nós quisemos que ele fosse. Foi um hippie cósmico quando acreditámos que a salvação estaria no amor. Foi um alienígena andrógino para que a diferença – ou, melhor dizendo, a igualdade – pudesse também ela reclamar o que é seu por direito. Foi o lado branco de um fascismo indecifrável na altura em que a nossa sombra tremia de tanto querer gritar. Foi um herói. Foi a música que dançámos em noites chuvosas, de braço dado, sapatos vermelhos nos pés. Foi tudo isso e muito mais, e tantas outras coisas que poderia ter sido, incluindo Lázaro. Mas para ser Lázaro teria que ter renascido.

Bowie não renasceu porque o génio não evita a morte. Mas pode dela troçar, pode dar-lhe a volta e devolvê-la em tons de arte. Blackstar, acabado de sair, é o magnum opus de um Homem consciente do seu fim, sem que o tema ou o renegue. É mais do que um testamento ou uma despedida; é um sorriso aberto dirigido a todos os que o amaram, e um manifesto de escárnio apontado à mesma estrela negra que o transportou para o outro lado, onde supomos que Bowie esteja, neste momento, a dedicar-se a tudo o que não conseguiu fazer em vida. Não supomos: temos a certeza. Porque um Bowie parado é muito mais difícil de imaginar que um Bowie morto.

Diz-se que os grandes nunca morrem, porque a sua pegada no planeta perdurará para sempre na memória de todos os que o seguiam e veneravam. Mas Bowie não era um grande. Não existem instrumentos ou medidas que possam definir com exactidão o impacto que Ele teve na cultura e na arte, em todas as suas vertentes, em todas as suas expressões. Era muito mais do que isso, era um gesamtkunstwerk que respirava, a expressão máxima do potencial da humanidade para se transformar, para se reabastecer, para ser, por ora, feliz. E, tendo-o a Ele, e estando a sua essência espalhada por vinte e seis discos e muitas outras canções, só nos resta fazer-lhe jus e conseguirmos – não tentarmos – ser felizes para sempre.
Paulo Cecílio
pauloandrececilio@gmail.com

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