Mensalidade Xis
· 27 Out 2014 · 22:41 ·
Paul Simon tem uma canção que me vem frequentemente à cabeça. Bom, na realidade serão duas canções, com o mesmo título, separadas em parte A e parte B, embora a sua ordem de audição em disco seja a inversa. A que me assalta mais vezes é a A, um experimentalismo pop-jazz colorido pela guitarra de Nile Rodgers; mas também sucede ser a B, primeiro calmo aceno de Simon a uma África de marimbas longínquas. Complicado? Talvez. Em qualquer dos casos chama-se “Maybe I Think Too Much”.


 
Foi o que aconteceu com o facto de assinar no Bodyspace uma Mensalidade. Olhei à volta para quem acompanharei neste registo e compliquei-me: tudo gente a quem se deve ler para ter ouvidos, concordando ou discordando; muitos de quem tenho saudades de trabalhar com e todos em pleno fulgor profissional dessa coisa de “dançar sobre arquitectura” que é “escrever sobre música”. E euzinho; um amador destas coisas desde o último número do UM (Dezembro de 2006!), escrevendo apenas newsletters, textos para bandas que me agradam (e convidam) e abébias no Facebook, com excepção da fugaz passagem anglófona pelo Wolf-ear.com há um ano. O medo, o pânico, “the horror”!

Desta vez mais tarde do que cedo, lá veio Paul Simon cantar-me o que dirá a ele próprio desde os anos 1970, “maybe I think too much for my own good”. Afinal, a solução poderia sempre ter estado ali, a poucas semanas depois da última conversa sobre esta possibilidade, poucos dias antes dela ter sido oficializada e onze anos antes disto tudo.

Ou seja, a 11 de Outubro de 2014, os Rated with an X deram um dos melhores concertos a que assisti em dois anos: rock solto com pulsar pop e garra punk, a displicência segura da garagem e uma amplitude de festival. Coisa rara para uma época em que os xis musicais se regem por outros factores (tv, etc) ou vectores (nichos); e vindos de uma zona genuinamente proletária (a Maia) com letras políticas sem serem panfletárias, existenciais sem serem existencialistas e no fio curto de palavra e som que se cola ao ouvido dizendo sempre algo.



Para os poucos que possam ter ouvido o EP “Black Codex”, de 2012 (razão suficiente para este texto, aliás), esperem ao vivo a melhor amplificação das referências que uma edição de autor não conseguiu arrancar do disco (Pixies, P.I.L., Happy Mondays, Beastie Boys, Ian Dury… New Order, menos). Mais uma volta pelo hard rock, um sabor a Buzzcocks e a ligeira impressão de que seria giro, um dia, Paddy McAloon ou Lloyd Cole fazerem os arranjos das músicas de Mark E Smith. Se isto não vos servir como género-coiso ou perspectiva de identidade própria, meus caros, podem largar a leitura que nem mais uma palavra da prosa vos convencerá do que quer seja.

Quanto a mim, talvez a cave garageira do portuense Canhoto, naturalmente cheia, suada como antes do ar condicionado, tenha influenciado esta apreciação; mas não creio que de tão pequenamente fixe (é a palavra certa) fosse suficientemente forte para diluir as expectativas e receios que este concerto acarretava. É que, por exemplo, se espero ouvir ao vivo Tom Waits desde que conheço Tom Waits, esperava ouvir ao vivo Rated with an X desde que conheci City Zen.

Em Março de 2003, a redacção do Blitz no Porto recebe uma maqueta de uma banda que se reclamava “influenciada pelo tempo e pelos relógios”. Curiosa proposição. A maqueta chamava-se “They Got the Money / We’ve Got the Spaceship” e a banda, City Zen. O Jorge Manuel Lopes (um dos ‘mensaleiros’ acima aludidos), achou por bem entregá-la à minha consideração e, dois meses depois, saía uma entrevista no defunto jornal com o título “Permissão para Descolagem”. Não descolaram.

Devido a problemas de saúde, esses City Zen viriam a perder o vocalista Romeu César (vocalista, letrista e elemento pivot da banda com João Maia, guitarrista, teclista e principal compositor), mas, em 2009, ainda editaram o EP “How to Drive a Roundabout”, com António Fernandes na voz. Já outros, demasiado preocupados com o que tocavam, talvez até com o mainstream directamente em vista, e definitivamente desfalcados do carisma do primeiro vocalista.

Em 2012, João Maia e Romeu César, já recuperado, voltam a reunir-se e fundam os Rated with an X, que integram ainda o Ivo Martins no baixo, o Francisco na bateria e o Henrique Fragoso na guitarra. Depois disso, compõem temas novos e recuperam antigos para nova roupagem, editam “Black Codex” e dão o concerto que faz este texto atravessar uma (ou duas) canção(ões) de Paul Simon para justificar-se como algo de actual, após 11 anos (!) de espera.



Mas não se trata tão só de um regresso ao futuro aqui, aproveitando estas jigajogas de palavras influenciadas pelos “relógios e o tempo” e do eu aqui estar porque estive com os que cá estão; é mais do que isso. Em 1998, eu disponibilizei ao Festival de Paredes de Coura a maqueta pedida dos Madame Godard, mas também ofereci a maqueta de uns gajos novos de Coimbra que ninguém conhecia chamados Belle Chase Hotel. Os Belle Chase tocaram nesse ano, os Godard no ano seguinte; mas a história das duas bandas e dos seus membros é suficientemente eloquente.

O advento, chamemos-lhe assim, dos Rated with an X enquanto ‘novos’ ‘ex-City Zen’, onze anos depois, é algo que, a meu ouvir, não deve ser perdido. E conto não ter sido tão surdo quanto isso ao pedir à banda que disponibilizasse para o Bodyspace a versão pré-produção de “Trip to the Blue”, em ante-estreia do que virá a ser um álbum que esperam editar em Abril de 2015 (há editoras interessadas, mas não é certo que interesse). Sim, mesmo que cantem “we’ve come a long way, we’ve come a long way, to get to the blue” (bloody artists!); mesmo que não dê em nada.

Rated with an X - Trip to the Blue [mp3]


"Trip to the Blue", versão pré-produção de álbum previsto para Abril"

Um pouco como esta Mensalidade… xis. Porque foi incerta nas datas, atrasada e insegura no arranque. Que se der em nada, deu; mas der em algo, ainda apela ao tribunal editorial para uma mensalidade rectificativa. E que, principalmente, será uma incógnita maior deste lado do que desse. Desde que se continue a pensar demasiado, lá está.

Ride


Red Dress
Eduardo Sardinha

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