A nostalgia da caverna, uma alegoria para a classe média, mais complicada do que parece à primeira vista
· 16 Dez 2013 · 19:09 ·


Podemos ouvir os discos que quisermos sem sequer nos levantarmos.
Tínhamos sorte para o encontrar que queríamos nas lojas ou então gravávamos de um amigo. Podemos ouvir o disco até antes de ele sair. Não bastava esperar que ele saísse por cá, porque até isso podia não acontecer e tínhamos que ir lá fora ou esperar que um amigo o trouxesse. Ouvimos o disco e mal reparamos que até vem acompanhado de meta-informação extensiva. Líamos as notas e as letras que acompanhavam os discos, de fio a pavio, várias vezes. Temos concertos bons todas as semanas, falta-nos é o tempo e o dinheiro para assistirmos a todos. Aguardávamos, durante semanas ou meses de ansiedade, por aquele concerto do Nick Cave. Temos festivais para todas as marcas e todos os gostos, aos quais vamos, muitas das vezes, só porque sim. Poupávamos dinheiro para tentar ir a Reading, porque não havia outra coisa que quiséssemos tanto. Lemos textos de críticos caseiros cujos nomes não conhecemos ou nunca fixaremos, muitos deles extraordinários, muitos deles péssimos, e todos nos fazem sentir ainda mais perdidos no meio de tanta música que sai. Tínhamos o Magalhães, o Pires, o Sérgio, em cujo julgamento quase sempre confiávamos. Não precisávamos de mais. Fazemos música em casa, se tivermos tempo para isso, e lançamos o segundo ou terceiro álbum sem que ninguém nos conheça. Tínhamos que gastar um dinheirão em instrumentos e em estúdios da treta, com técnicos da treta, e conseguir uma maqueta da treta para poder mostrar aos clubes e aos jornalistas era um feito decisivo. Sabemos mais de como fazer e mostrar o nosso trabalho. Éramos explorados por tipos demasiado instalados no negócio. Vemos os filmes e séries que quisermos, mas são tantos que não temos tempo para ver tudo o que queremos. Víamos o que nos chegava a um canal e meio de TV e ainda gramávamos com o Dallas. Vamos ao Google e fazemos visitas guiadas por museus de todo o mundo. Íamos ao museu dos coches e líamos coisas extraordinárias sobre galerias do estrangeiro. Podemos conhecer toda a História da arte, clique atrás de clique, só que não gastamos tempo com pormenores. Gostávamos de ir a casa daquele amigo que tinha um volume sobre o Vermeer. Podemos ser nostálgicos o mais possível, porque temos o passado à mera distância de um desejo. O passado preenchia apenas as lacunas que o presente tranquilamente nos deixava. O lastro do passado e este presente imenso não nos deixam tempo para o futuro. Sonhávamos. Gostamos de histórias de época. Adorávamos ficção científica. Mas temos tudo aquilo que nem sequer ambicionávamos ter. Queixávamo-nos de falta de acesso, de vivermos longe do centro do mundo.
Queixamo-nos. Queixávamo-nos.
Vítor Junqueira

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