A propósito de Days Are Gone, Haim
· 21 Out 2013 · 14:45 ·


Aqui há uns tempos, entre a provocação, uma ironia residual e uma afirmação carregadinha de bom senso, o crítico inglês Everett True – esse que viu as entranhas dos Nirvana, levou Cobain numa cadeira de rodas para palco e gostou – confessava-se surpreendido por ainda existirem espécimes masculinos a tocar rock, por ainda haver homens capazes de fazer canções que não fossem verdadeiros estrupícios ou por haver mulheres que demonstravam o desastrado talento musical de um homem.

Entusiasmos vindos sobretudo de pequenas bandas de intensa selvajaria nas imediações do pós-punk a tresandar a suor e de um garage imundo. Dificilmente extensíveis ao álbum Days Are Gone, do trio norte-americano Haim, miúdas limpinhas e fazedoras de melodias cantaroláveis como se os anos 80 estivessem em repeat e tivessem acabado de arrancar novamente. No site Collapse Board, para onde True migrou a sua escrita, as Haim tornaram-se um dos mais animados tópicos de discussão dos últimos meses. Tudo porque uma crítica negativa, contra-corrente relativamente ao generalizado endeusamento, foi encaixada naquela ideia de que atacar um álbum pop, quaisquer que sejam os argumentos, levanta o véu sobre dois infernais ‘ismos’: sexismo e elitismo.

As Haim, na verdade, têm tudo para irritar. Todo o charme destas três raparigas assenta numa marretada de anacronismo: canções que ouvimos e associamos a Stevie Nicks, Fleetwood Mac, Bangles ou Pretenders, tão ensopadas na década de 80 que só os pozinhos esporádicos de produção a pagar royalties a Timbaland nos beliscam para a realidade de que estas não são canções para arrancar um filme de John Hughes. Intencional ou não, o título Days Are Gone parece remeter precisamente para essa sonoridade feita íman para tudo quanto são recordações da adolescência, mergulhos repetidos num banho de nostalgia doce. E irrita também porque a maioria não teria coragem de lhes dedicar um segundo de atenção aqui há coisa de dois ou três filmes de Sofia Coppola.

O que quer apenas dizer que Days Are Gone é de uma eficácia pop admirável – laboratorialmente apontada a homens, brancos, de meia-idade, há quem ataque. Tudo aquilo parece já nos ter deslizado pelos ouvidos, a familiaridade é instantânea e é tão fácil gostar que nem dá luta. É bom no sentido em que – comemos um rebuçado bola de neve e reencontramos a infância em cada sorvedela. Pegando noutros exemplos femininos recentes e igualmente anacrónicos (porquê? porque sim): é aquilo que The Fool ou Into the Diamond Sun não são. Exemplos escolhidos a dedo porque obrigam, precisamente, a tirar os ouvidos do sofá, não passam mel onde mel já existia.

The Fool, das Warpaint, era um magnífico testemunho de como o pop/rock independente na passagem dos 80 para os 90 se fizera lúgubre, com vozes cândidas a passear-se em pontinhas dos pés (para não se queimarem) por cima de instrumentais entre a depressão, a ira e a frustração. Umas Lush versão norte-americana, mais preparadas para lidar com a herança velvetiana, capazes de rebentar numa série de direcções diferentes. The Fool, era essa a sua maior qualidade, era um disco de muitas janelas por onde preparar futuras fugas nocturnas, algo que a falta de luminosidade das canções poderia iludir. Foi grande, o próximo há-de ser maior.

As Stealing Sheep, por seu lado, lançaram uma das maiores pérolas discográficas dos últimos anos, mas quase ninguém parou para as ouvir. Melodias folk vergastadas por órgãos entre o psicadelismo e a missa negra, um odor tremendo a rituais pagãos e a bruxaria de vão de escada, tudo enfiado dentro de canções que, só pode ser a magia a funcionar, não param de crescer a cada audição. Into the Diamond Sun soa bonitinho e inocente à primeira, mas é um monstro titânico de escrita de canções. Dá vontade de criar uma falsa conta de email por dia para as bombardear com missivas para que não pensem em voltar a servir às mesas, vender coisas ou lá o que era que faziam.

Só que às Warpaint e às Stealing Sheep faltou talvez até agora um pequeno empurrão para serem adoradas como mereciam: darem um ar de memórias corrigidas à sua música. A pop radiofónica das Haim elevada a música de charme tem isso. Engana o tempo.
Gonçalo Frota

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