A propósito de Largo da Memória, Ricardo Ribeiro
· 14 Out 2013 · 11:41 ·
© Isabel Pinto

Ricardo Ribeiro tem daquelas vozes que, ao soarem, calam o mundo. Traz um gosto acre e intenso àquele fado que numa palavra se pode resumir a bairrista. Mas no seu terceiro/quarto álbum (é escolher se começamos a contar pelo disco de jovem adulto na CNM ou pelo disco – conhecido dos escaparates das áreas de serviço – de jovem e inocente adolescente) toma talvez os maiores riscos agrafados à canção lisboeta desde que Paulo Bragança lançou, em 1994, Amai. Com uma pequena diferença: onde Ribeiro concorre para a intemporalidade, Bragança fazia-o de olhar fixado na contemporaneidade.

Esse risco é ampliado pelo facto de que quando Ricardo Ribeiro ataca o fado, fá-lo segundo os ensinamentos da tradição ajudada a fixar por Fernando Maurício e Alfredo Marceneiro. Não há coisa mais pujantemente genuína, em que a interpretação leva tudo à frente, troa como se tivesse acabado de engolir Lisboa num só trago e a deitasse para fora numa voz que ainda chega a ferver. Mas, em Largo da Memória, o homem não pára no fado. Pode hesitar, desacelerar e ameaçar a travagem brusca, mas depois não consegue conter-se e desata numa cantoria possuída que nos leva para o flamenco, para a música sefardita ou para o Magrebe. Não é coisa pouca. Há frases melódicas que começam na Mouraria e acabam no Cairo. A isto chama-se, à falta de melhor conceito, génio interpretativo.

E este era um risco que fazia falta ao fado. Ana Moura tem alimentado o flirt com a pop, numa ousadia calculada, a que a sua carreira internacional obriga. Mísia tem feito de tudo um pouco, cantado Joy Division, fazendo duetos com Iggy Pop e Legendary Tiger Man, um sem-fim de acrobacias artísticas por vezes francamente entusiasmantes, mas com um cuidado extremo em não se deixar manietar e em ficar presa a orbitar em torno do fado. Da mesma maneira que A Naifa tem arriscado fazer do fado uma canção que não se assume como tal mas que tresanda a uma espantosa abordagem do que o género pode ser se sintonizado com a Lisboa que hoje existe – plena de assimetrias entre o velho e o novo, entre as ruelas e as avenidas, entre a telefonia e o leitor MP3.

E partilha, precisamente, o traço de contemporaneidade que Paulo Bragança ousou com um brilho imenso em Amai. Quem reivindicava Nick Cave como fadista e enfiava a letra de “Sorrow’s Child” a correr atrás da guitarra portuguesa de Mário Pacheco, quem ia buscar os Massive Attack e os Portishead como ambiente de fundo para “Espírito da Carne”, queria que o horizonte do fado não morresse no Tejo. Bastava levantar os olhos e, por entre o nevoeiro, era possível que se entrevisse Bristol. Ou, pelo menos, acreditar que sim.

Mas se estes eram os dois temas em que era fácil, demasiado fácil, perceber a provocação de Paulo Bragança, ficaria de fora o reconhecimento de tudo o resto: as teclas barrocas de Carlos Maria Trindade, os ritmos do imaginário tradicional português, a miríade de referências urbanas, sim, mas também rurais que alastravam pelo álbum e o tornaram uma peça única, irrepetível, quer para a música nacional quer para o próprio Bragança. Uma criatividade tão explosiva e garrida, e feliz no tempo, é coisa que não nos bate à porta todos os dias. Um raio nunca cai duas vezes no mesmo sítio. Felizmente, o de Ricardo Ribeiro não cai assim tão longe. Haja coragem para ir lá espreitar, uma vez que um raio… enfim, já se percebeu.
Gonçalo Frota

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