Os 10 discos de free jazz que nos foderam os ouvidos
· 22 Nov 2011 · 09:58 ·
O jazz tem mais de um século de vida. Entre os devaneios de Buddy Bolden e as explorações de Peter Evans passaram-se cem anos, tendo o género assistido a milhares de evoluções, transformações, mutações, fusões. Nenhuma terá sido tão chocante quanto o aparecimento, em meados dos 1960s, do free jazz. Enfatizando a improvisação como característica central, o free detonou a tradição, menosprezou os conceitos de estrutura, abriu caminho à liberdade total. Essa música incendiária (também denominada “fire music” ou “new thing”) marcou também um ponto de ruptura, sendo ainda hoje mal aceite por muitos, que assumem a cegueira voluntária de dizer que o jazz morreu depois de Coltrane, chamando “jazz” a apenas algo que replica “ad aeternum” fórmulas gastas até à exaustão, reclamando a obrigatoriedade do “swing”. O jazz evoluiu e o free foi fundamental nessa evolução, estando presente, de forma mais ou menos clara, na música que se faz na actualidade, nas múltiplas correntes que fazem hoje do jazz uma força viva, em cada músico que improvisa energicamente sem medo. Entre gritos, labaredas, rugidos e explosões, aqui ficam dez discos que fornicaram violentamente os nossos doces ouvidos. E nós gostamos muito. Nuno Catarino

© Angela Costa


 

 

Ornette Coleman
The Shape Of Jazz To Come (1959)
Atlantic


Se a liberdade e o improviso estão inscritos no código genético do Jazz, este disco deu passos em frente (grau de improvisação simultânea; papel dos acordes…) em relação à herança recebida, que, ainda assim, não deixa de reflectir. Em comparação com o que Ornette Coleman viria a fazer mais tarde, este até é um disco acessível (com swing e assinalável sentido de melodia), mas ao apontar futuros caminhos tornou-se um trabalho revolucionário no seu tempo e que permanece fundamental nos nossos dias. Temas como “Lonely Woman”, “Peace” ou “Congeniality” – nos solos de Coleman e Don Cherry, mas também nos ritmos cruzados de Charlie Haden e Billy Higgins – fluem como um rio de águas mais ou menos bravas e que não se deixam limitar pelas margens: partem da melodia para serpentear em várias direcções, através de explorações sonoras sem amarras ou rotas pré-definidas. Um pouco como a relação da história para a escrita ou das cordas para o alpinismo - será bem mais arriscado (mas também muito mais gratificante) construir uma narrativa ou escalar uma montanha sem recorrer a estas ferramentas. The Shape Of Jazz To Come foi uma obra-charneira na revolução musical que estava em marcha no espírito do seu autor, como os títulos dos álbuns que este tinha lançado antes (Something Else!!!!; Tomorrow Is The Question!) preconizavam e aqueles que viria a editar depois (Change Of The Century; e sobretudo Free Jazz) haveriam de confirmar. Hugo Rocha Pereira


 

 

Albert Ayler
Spiritual Unity (1964)

ESP-Disk


Aos primeiros acordes, Spiritual Unity retrata-se imediatamente como disco essencial para perceber, usufruir, explicar e dignificar o free jazz, esse imenso bicho de sete cabeças para uns e uma religião para outros. Em quatro momentos igualmente importantes, o controverso Albert Ayler, em preciosa comunhão com Gary Peacock no contrabaixo e Sunny Murry na bateria, assinou um disco descrito na altura como “chocantemente diferente”, uma autêntica “agressão ao jazz” (elogio). Spiritual Unity é realmente um disco quase violento, saído directamente das entranhas mais congestionadas, cruíssimo na sua essência e altamente recompensador nas opções que deu ao jazz por volta de 1964. "The Wizard" é uma explosão de criatividade imensa, um momento irrepetível de liberdade e combustão. Spiritual Unity não é apenas o disco essencial da discografia de Albert Ayler; na riqueza da sua exploração, é também um dos documentos mais importantes do free jazz e um capítulo essencial da música improvisada, independentemente das suas cores ou tons. Um soco no estômago não é, regra geral, mais coisa menos coisa, algo de bom: mas neste caso é uma bênção. André Gomes


 

 

John Coltrane
Ascension (1965)
Impulse!


Em 1965 John Coltrane já havia esticado os limites do jazz: editou a obra-prima do hardbop Blue Train (1957), marcou presença no über-clássico Kind of Blue (1959), fundou um quarteto (McCoy Tyner, Jimmy Garrison e Elvin Jones) que se materializou cânone – e com quem editou clássicos como Giant Steps, Impressions ou o lindíssimo A Love Supreme. Para a gravação de Ascension, Coltrane recrutou sete músicos extra, além dos três magníficos que completavam o quarteto: Freddie Hubbard e Dewey Johnson (trompetes), Marion Brown e John Tchicai (saxofones alto), Pharoah Sanders e Archie Shepp (saxofones tenor) e Art Davis (contrabaixo). Sem indicações precisas por parte do líder, a música avançou sem rede - alternando entre grupo, solo, grupo, solo, grupo, solo, etc. Cada músico investiu o melhor de si, com entrega enérgica, contribuindo para um resultado colectivo incomparável. Explosiva, estilhaçada, imprevisível, inigualável, a música de Coltrane e comparsas alcançou aqui um altíssimo cume criativo. Ornette Coleman já havia desenvolvido, algum tempo antes, uma proposta aproximada, com o disco Free Jazz (1960), mas a proposta de Coltrane arrisca prolongar-se em termos de intensidade, força e libertação. A partir daí a música de Coltrane não voltou a olhar para trás. Nuno Catarino


 

 

Charlie Nothing
The Psychedelic Saxophone Of Charlie Nothing (1967)
Takoma


Não há género mais difícil de definir do que o jazz. Consequentemente, não há subgénero mais difícil de definir do que o free jazz; ou será o som de artistas como Sun Ra, Ornette Coleman e Albert Ayler exactamente o mesmo? E que dizer então de Charlie Nothing, que nem sequer era músico tanto quanto construtor de url: http://en.wikipedia.org/wiki/Charlie_Nothing#Dingulator text: instrumentos estranhos a partir de automóveis? Em 1967, um ano antes de Peter Brötzmann destruir o mundo com o seu saxofone-metralhadora, Nothing tinha no seu Psychedelic Saxophone a última possibilidade de redenção. É um disco exploratório, quase místico, ruptura do homem consigo mesmo; uma ego death criada a partir de um simples instrumento, ao qual se junta ora o leve drone de um gongo, ora o tribalismo inerente a uma conga, com o intuito primeiro de pedir perdão ao Grande Espírito, com o intuito segundo de fugir aos cânones não só do jazz mas da música; a improvisação como motor único da experiência, da mesma forma que cada qual sente a religião à sua maneira. Duas faixas que totalizam pouco mais de trinta minutos, demasiado bom para se limitar ao estatuto de culto, e uma magnífica porta de entrada no mundo do free para quem, como eu, acha Evan Parker um chato de primeira. Paulo Cecílio


 

 

Peter Brötzmann
Machine Gun (1968)
FMP


Terá sido com o surgimento da “free improv” europeia que os ideais do free jazz mais se aproximaram da concretização perfeita. Sem o peso da tradição (americana), os ingleses, alemães e holandeses começavam a trabalhar uma música sem bloqueios nem amarras, emulando com garra a ferocidade dos ídolos transatlânticos (Ayler, Coltrane, etc.). Para o seu segundo disco na condição de líder o saxofonista alemão Brötzmann reuniu um grupo de músicos que o tempo haveria de classificar “all-star” (na altura eram apenas músicos curiosos, com vontade de improvisar): Evan Parker, Willem Breuker, Peter Kowald, Buschi Niebergall, Sven-Åke Johansson, Han Bennink e Fred Van Hove. O álbum abre com a cavalaria (saxofones) a disparar sem misericórdia, dando o mote para aquilo que se seguiria: vertigem tumultuosa, força, urgência, choque e terror. Saxofones em combustão e um piano a queimar, sobre uma secção rítmica, reforçada, imparável. Este monumento de serralharia foi-se transformando, justificadamente, não só em documento de referência da improvisação europeia, mas também em símbolo do jazz livre e enérgico. Numa altura em que celebra 70 anos de idade (e vê-se retratado no documentário Soldier of the Road), Peter Brötzmann tornou-se ícone. Tendo continuado o trabalho seus ídolos de juventude pela via da originalidade, Brötz logrou alcançar igual grandeza. Este é o seu álbum mais celebrado. Nuno Catarino


 

 

Alan Silva and his Communion Orchestra
Luna Surface (1970)
Actuel


Com um catálogo absolutamente impressionante na documentação do jazz mais avant-garde (o termo é uma merda, mas serve para situar o happening de modo simples), várias seriam as opções a ter em conta para este artigo colectivo vindas com o selo da francesa Actuel. A escolha recaiu em Luna Surface, mas poderiam ter sido igualmente apanhados discos tão incríveis como o Echo do Dave Burrell, o Mockey-Pockei-Boo do Sonny Sharrock ou o B-Xo/N-O-1-47a do Anthony Braxton. É orientar tudo, assim que possível. Contando nas suas fileiras com gente como o Archie Shepp, Grachan Moncur III ou os já citados Braxton e Burrell, a Celestrial Communion Orchestra vai disparando em direcção ao cosmos sob a batuta invisível do contrabaixo do Alan Silva (quase sempre tocado com arco), num poder de fogo incomensurável vindo/chegando de todo = nenhum lado. Revolvendo continuamente num “caos” interno de comunicação extra-sensorial feérico, é música tão urgente hoje como o terá sido em 1969, imune a toda e qualquer preconcepção de ensemble ou score. Disco absolutamente libertário, essencial para toda e qualquer pessoa com um mínimo de interesse na música improvisada, Luna Surface é um dos momentos chave da arte pan-africana mais far out. Momento de comunhão com vista ao patamar último da elevação espiritual, numa sessão irresoluta partilhada por 11 músicos brilhantes num acto de entrega total. Bruno Silva


 

 

Sun Ra
Space is the Place (1972)
Impulse


Um disco que é literalmente um filme. Sim, porque este disco dá nome a um filme que sai anos mais tarde, e porque ouvi-lo, seja onde for, esteja onde estiver, também é um filme, a vida nunca mais será a mesma. No meu caso foi há mais de 15 anos e lembro-me de pôr o CD novinho em folha na sala multiusos da faculdade e kaboom, toda a gente começa a sair aos poucos, uns refilando, outros fugindo de fininho com uma bela cara feia. E eu feliz. A aparelhagem comum tornou-se minha e do mantra "Space is the place" repetido N vezes até ao infinito nunca exausto. Enquanto muitos diziam horrível, eu, por outras palavras, pensava vanguardista, cósmico, psicadélico, jam espacial, free jazz com a pimenta interplanetária dos moogs, caldeirão caleidoscópico da Arkestra e a bordo o primeiro coro de gospel do mundo que foi a Saturno. Se não foram, pelo menos Herman Blount, mais conhecido por Sun Ra, jurou que isso lhe aconteceu ainda na década de 30 do século XX. Raptado e levado até Saturno quando ainda nem se falava de OVNIs ou de raptos. Isso é obra, tanto como este disco é uma obra-prima. Sun Ra é o alucinado maestro-piloto que dá o mote-com-dedadas-cirúrgicas no teclado do moog qual cockpit da nave espacial que aos poucos, assente na groove atonal e eterna do mantra, vai explodindo em instrumentos de sopro alienígenas – “só podem ser alienígenas”, pensa quem ouve à primeira, eu pensei – tal é a intensidade sobre-humana desta faixa. Vinte minutos que parecem a melhor hora de jazz de sempre. E depois há mais e não do mesmo. E para uma mão-cheia do melhor jazz restam 4 faixas: Images, Discipline, Sea of Sounds and Rocket Number Nine. As duas primeiras, mais clássicas e igualmente deliciosas na abordagem, servem para respirar fundo o ar extraterrestre parco em oxigénio pós-faixa 1. As duas últimas, umas nervosas incendiárias, são space-jazz do mais fino calibre. Faixas mais curtas e todas elas com aquela sensação de que já lá estamos, que chegámos ao nosso destino: Saturno. E não é uma viagem de ida e volta. A não ser que não se carregue no repeat ou no play outra vez e se desligue a aparelhagem. Aí talvez. Mas cuidado ao voltar à realidade, olhem que a lei da gravidade na Terra não é a mesma. Nuno Leal


 

 

Evan Parker
The Snake Decides (1988)
Incus


Por toda a glorificação mais do que merecida ao trabalho do Evan Parker em colaboração com quase todos os grandes do Jazz e territórios mais ou menos indefiníveis da música mais transgressora, descurar as investidas a solo do mestre é ignorar uma parte importantíssima para a compreensão daquilo que faz dele o maior saxofonista vivo do mundo (aberto a discussão? É como tudo na vida...). Six of One de 1980 já deixava na eminência um fôlego infinito capaz de chegar do skronk mais agreste a uma delicadeza quase drone num contínuo ininterrupto, mas é em The Snake Decides, gravado para mítica Incus seis anos depois, que é sublimada uma linguagem absoluta. Com o título a apontar para os encantadores de serpentes de países como o Sri Lanka, o Paquistão ou a Indía (há um disco lindo na Hanson gravado pelo Aaron Dilloway a documentar isto), fica patente a ideia de hipnose como fim último. E é aí que The Snake Decides chega, elevando esse efeito ao ponto de uma massagem de tareia feita de overtones e justaposições multifónicas em respiração circular, num abismo de luz que parece nunca ter fim. Coisa linda de colossal, em quatro malhas improvisadas em saxofone soprano (destaque para os 20 minutos da faixa-título logo a abrir) captadas em todo o seu imenso potencial pelas mãos sábias de Michael Gerzon numa capela em Oxford, num daqueles discos cuja lógica ad infinitum irá sempre revelar novas camadas de significado. Sempre. Bruno Silva


 

 

Wolf Eyes & Anthony Braxton
Black Vomit (2006)
Victo


Encontro histórico de rapaziada noise nascida e criada no punk e metal com um histórico do jazz, união de duas gerações e duas formas de abordar o som com mais afinidades do que de distâncias. É provavelmente a melhor coisa que já ouvi de Wolf Eyes: à crueza de feedback e destruição dos de Michigan, somam-se os sopros de fogo de Braxton. O encontro aconteceu ao vivo, em 2005, e felizmente houve alguém que o registou. Braxton tinha visto os Wolf Eyes uns meses antes e ficou estupefacto, ao ponto de comprar uma cópia de tudo o que tinham para vender nessa noite. Ouvem-se clássicos dos Wolf Eyes, mas a simbiose entre os lobos e Braxton cria algo de totalmente novo – ao ponto de pensarmos que os dois deviam fazer uma banda. "The Mangler", longa faixa de 27 minutos que junta várias peças, abre com a quinquilharia ruidosa ao fundo e o saxofone de Braxton às curvas (os Wolf Eyes mais subtis do que nunca). O ruído vai-se adensando, com ocasionais fugas, até entrar "Stabbed in the Back", avassalador ataque noise em preparos heavy metal. A segunda peça, listada como "Rationed Rot", é na verdade uma interpretação tortuosa de "Black Vomit" (ouvimos Braxton a escolhê-la, com óbvio prazer no barulho que estavam a gerar). Há uma batida marcial, como no melhor dos Gristle, mas há também espaço para respirar. Essa é, aliás, uma das virtudes desta performance: dois mundos em diálogo, sem atropelos, a exibir mestria. Tudo isto só dura 33 minutos - devia durar muito mais. Pedro Rios


 

 

Matana Roberts
The Chicago Project (2008)
Central Control


O nome é si é apelativo. Provindo do hebraico, Matana significa “dádiva” e esta saxofonista norte-americana tem tentado fazer jus ao nome, não só em nome próprio (como neste Chicago Project dedicado à sua cidade natal), como também enquanto acompanhante de certos colectivos canadianos, uns de acrónimo GY!BE, outros chamados variações de Silver Mt. Zion. Chicago Project foi o primeiro álbum na Central Control (em 2011 já lançou pela Constellation) e impressiona não pelo estrebuchar tresloucado do saxofone, mas pelo entrelaçado de um som moderno ligado ao free jazz e dos muito presentes aspectos clássicos. Logo em Thrills compreende-se o espírito antigo no corpo jovem de Roberts, quando no espaço de apenas quatro minutos é capaz de dar azo a esses clássicos no começo, lançando uma pitada de desvario a partir de metade e regressando a casa para finalizar. O ponto alto do álbum é a evidente Love Call, uma canção de amor que passa por brado desesperado em busca de algo, de alguém, de uma resposta. O álbum podia (e devia) encerrar com For Razi, mas Roberts preferiu acrescentar uma frase mais após esse ponto final. Quem sou eu para negar o começo inevitável na sequência de um qualquer fim? Tiago Dias



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